sábado, 5 de setembro de 2020

Importância das diretrizes para o manejo da rinite alérgica


Diretrizes para o tratamento da rinite alérgica (RA) desenvolvidas nos últimos 20 anos qualificaram melhor o cuidado com os pacientes. Um workshop de experts feito pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em dezembro de 1999 deu origem a uma iniciativa designada "Rinite Alérgica e seu Impacto na Asma" (ARIA), cujo relatório inicial baseado em evidências teve quase 3.000 referências e foi publicado em 2001.1 Uma atualização do relatório ARIA foi publicada em 2008, baseada em novas evidências.2 Esse novo relatório resultou de um processo contínuo de revisão da literatura sobre aspectos anteriormente não cobertos, como, por exemplo, medicina complementar e alternativa, esportes, atualização sobre as relações entre rinite e asma, prevenção e tratamento.


No entanto, é necessária informação transparente sobre as diretrizes para facilitar a sua compreensão e aceitação. O Guia ARIA foi a primeira diretriz para doença respiratória crônica a adotar a classificação do Sistema de Graduação da Recomendação, da Avaliação, do Desenvolvimento e da Avaliação (Grade), um método avançado que tem sido adotado pela OMS. Uma nova revisão ARIA foi publicada em 2010,3 dez anos após a publicação do primeiro relatório do workshop ARIA-OMS. A iniciativa ARIA tem sido muito bem-sucedida na disseminação de informações e evidências, bem como na formulação de classificação de gravidade e proposta de sistematização do tratamento. Mas isso não é bastante para orientar novas práticas, especialmente quando elas demandam a participação de médicos de família, pediatras e outros profissionais de saúde. É preciso desenvolver algoritmos que indiquem com precisão o que deve e pode ser feito diante de um caso específico em sua região. Uma publicação recente de experts da iniciativa ARIA propõe um algoritmo de tomada de decisão na prática clínica para o controle da RA em adolescentes e adultos.4,5


A atualização do Consenso Brasileiro sobre Rinites - 2017 incorpora e adapta para a realidade brasileira as informações relevantes publicadas em todos os documentos da iniciativa ARIA, tal como foi feito nas versões anteriores do documento brasileiro,6,7 elaborado sempre por representantes da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia, da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial e da Sociedade Brasileira de Pediatria.


As principais atualizações feitas no documento base de 20127 foram assim estabelecidas.


Definição de rinite


Rinite é a inflamação e/ou disfunção da mucosa de revestimento nasal e é caracterizada por alguns dos sintomas nasais: obstrução nasal, rinorreia anterior e posterior, espirros, prurido nasal e hiposmia. Geralmente ocorrem durante dois ou mais dias consecutivos por mais de uma hora na maioria dos dias.8


Classificação das rinites


Depende dos critérios empregados (dados clínicos, frequência e intensidade dos sintomas, citologia nasal, fatores etiológicos, fenótipos [clínica, padrão temporal, gravidade, duração, controle, resposta aos tratamentos e presença de comorbidades]).9


Em documento recente, a Academia Europeia de Alergia e Imunologia propôs a classificação das rinites crônicas com base no principal agente etiológico. É constituída por quatro subgrupos, a saber: 1) rinites infecciosas (agudas, autolimitadas, causadas por vírus e menos frequentemente por bactérias); 2) rinite alérgica (forma mais comum, induzida por inalação de alérgeno em indivíduos sensibilizados); 3) rinite não alérgica não infecciosa (grupo heterogêneo, pacientes sem sinais de infecção e sem sinais sistêmicos de inflamação alérgica. Exemplos: rinite induzida por drogas, rinite do idoso, rinite hormonal, rinite da gestação, rinite ocupacional não alérgica, rinite gustatória e rinite idiopática); e 4) rinite mista (expressão significante em pacientes com rinite crônica, com mais de um agente etiológico, conhecido ou não).10


Outro conceito recente é o do endotipo, que visa a identificar os mecanismos subjacentes envolvidos na gênese da doença e, assim, permitir tratamento direcionado e mais preciso para cada paciente.9,10 Esses endotipos são complexos e secundários a processos celulares (eosinófilos, neutrófilos e mediadores inflamatórios deles decorrentes), moleculares (IgE sérica total e específica, citocinas e quimiocinas inflamatórias), além de danos estruturais da mucosa de revestimento nasal.9,10 Assim, identificam-se quatro endotipos de rinite: a) com resposta imunológica tipo 2; b) com resposta imunológica tipo 1; c) rinite neurogênica; d) disfunção epitelial (9). Espera-se que a rinite mais bem caracterizada receba um tratamento individualizado, mais preciso e com maiores chances de êxito.


Rinite alérgica


A classificação da guia ARIA, baseada em frequência e intensidade dos sintomas, foi mantida por sua grande aceitação no meio médico brasileiro.1


Prevalência


À semelhança do observado em várias partes do mundo, o International Study of Asthma and Allergic Diseases in Childhood feito em várias localidades do Brasil mostrou, entre crianças e adolescentes, aumento da prevalência de sintomas nasais no último ano que atingiu 37,2% (entre 26,3% e 49,9%) e 16,2% (entre 15,4% e 27,9%) para rinoconjuntivite alérgica.11


Quadro clínico


O quadro clínico continua a ser importante para o diagnóstico da rinite alérgica. Além dos sintomas característicos (espirros, prurido, rinorreia e obstrução nasal), a obtenção de histórico alérgico pessoal e familiar é fundamental, assim como a identificação dos fatores desencadeantes.12


Fatores desencadeantes


Estudos nacionais reforçam a participação dos ácaros domésticos como os principais agentes etiológicos da rinite alérgica, seguidos por alérgenos de barata, epitélio de animais domésticos e mais raramente fungos.13,14 Na Região Sul do país os pólens têm importância na sensibilização de adultos e crianças.15 Reforça-se o papel dos irritantes da mucosa com especial ênfase aos poluentes e irritantes (tabela 1).16


Tabela 1 Fatores desencadeantes de alergias respiratórias16  


Aeroalérgenos

Ácaros pó domiciliar Dermatophagoides pteronyssinus, Dermatophagoides farinae, Blomia tropicalis

Baratas Blatella germanica, Periplaneta americana

Fungos Aspergillus sp, Cladosporium sp, Alternaria sp, Penicillium notatum.

Animais de pelo gato, cão, coelho, cavalo e roedores (hamster, guinea pig, furão doméstico, camundongos)

Pólens: gramíneas - Lolium multiflorum (azevém), Phleum pratense

Ocupacionais trigo, poeira de madeira, detergentes, látex.

Poluentes

Intradomiciliares fumaça de cigarro, material particulado (PM 10) e dióxido de nitrogênio (NO2) derivados da combustão do gás de cozinha ou fogão a lenha.

Extradomiciliares ozônio, NOx e dióxido de enxofre.

Irritantes Odores fortes, perfumes, ar condicionado, produtos de limpeza

Os alimentos raramente desencadeiam sintomas respiratórios de modo isolado. Na maioria das vezes vêm como manifestações associadas a quadros mais graves como a anafilaxia.17


Fisiopatogenia


Mecanismos celulares e moleculares participantes da reação alérgica e responsáveis pela inflamação alérgica são apresentados de modo a facilitar o entendimento dos diferentes endotipos de rinite propostos.9


Recursos diagnósticos


De acordo com a finalidade de avaliação eles podem ser divididos em: a) diagnóstico etiológico, b) avaliação da cavidade nasal, c) avaliação por imagem e d) avaliação complementar.


a) Diagnóstico etiológico


Os exames subsidiários mais importantes no diagnóstico etiológico da rinite alérgica, tanto pela especificidade como pela sensibilidade, são os skin prick test (SPT) e a avaliação dos níveis séricos de IgE alergenoespecífica. O diagnóstico de alergia e a identificação dos alérgenos mais relevantes em cada caso são importantes pela perspectiva de intervenções preventivas dirigidas, como o controle ambiental, pelas opções de tratamento farmacológico e, finalmente, pela opção da imunoterapia específica com alérgenos.


Os SPT com aeroalérgenos são os recursos mais usados no diagnóstico da alergia respiratória e evidenciam reações alérgicas mediadas por IgE. Devem ser executados preferencialmente com alérgenos padronizados, escolhidos de acordo com a relevância clínica pela história, idade do paciente, profissão, pelo ambiente, pela distribuição regional de alérgenos e sob a supervisão direta de médico devidamente capacitado para se evitarem os falso-positivos e falso-negativos e as potenciais reações sistêmicas.18 A intensidade da reação geralmente é mais reduzida nos extremos da vida e a presença de eczema extenso ou dermografismo, o uso de anti-histamínicos orais e o uso de corticosteroides tópicos por mais de sete dias são contraindicações do teste.18


Embora níveis elevados de IgE sérica total sejam admitidos por alguns autores como sinônimo de doença alérgica, podem ser detectados também em diferentes doenças, como infecção pelo HIV, aspergilose pulmonar alérgica, sinusite fúngica alérgica, linfomas, tuberculose, parasitoses com ciclo pulmonar, entre outras. Assim, o seu valor no diagnóstico de alergias é limitado. À semelhança dos SPT, os níveis de IgE total sérica são baixos nos primeiros anos de vida.19


Por outro lado, a presença de IgE sérica específica a um determinado alérgeno é forte indicador de sensibilização alérgica, mas não deve ser valorizada na ausência de sintomas alérgicos.20,21 Tem sensibilidade e especificidade similares aos do SPT, é mais onerosa, requer punção venosa, laboratório especializado e maior tempo para obtenção do resultado. Entretanto, não sofre a interferência de medicações e das condições da pele, é isenta de risco de reações alérgicas graves, permite a avaliação de número maior de alérgenos, tem melhor reprodutibilidade e não tem interferência da técnica na feitura do exame.20


Mais recentemente, a aquisição do Component Resolved Diagnostic (CRD) permitiu a determinação de IgE específica a múltiplos alérgenos (recombinantes ou não) com o emprego da técnica de microarray (ex: Immuno Solid Phase Allergen (ISAC) e possibilitou maior precisão diagnóstica e a possibilidade de discriminar cossensibilização de sensibilização cruzada por diferentes alérgenos que apresentam a mesma proteína em sua composição.21,22


No Brasil, está disponível o ImmunoCap-ISAC® (ThermoFisher Scientific), uma plataforma múltipla que identifica 112 componentes, naturais ou recombinantes, de 51 fontes alergênicas. O custo elevado ainda o restringe a casos muito especiais.


Apesar de os testes de provocação nasal (TPN) serem mais empregados na área de pesquisa, têm se mostrado úteis no diagnóstico de rinite alérgica, inclusive a rinite alérgica local, e de rinite não alérgica.23-25 São úteis no diagnóstico da rinite ocupacional, têm por objetivo identificar e quantificar a relevância clínica de alérgenos inaláveis ou irritantes ocupacionais.23,24 Os TPN devem ser feitos por médicos especializados, em locais apropriados e com o emprego de extratos alergênicos padronizados. Avaliação da resposta nasal pode ser feita por escore de sintomas, mas o uso de método objetivo de monitoramento é recomendado.23,24


b) Avaliação da cavidade nasal


Outros exames (citologia nasal, bacterioscopia e cultura de secreções de vias aéreas, avaliação do olfato, permeabilidade nasal [rinometria acústica, rinomanometria, pico de fluxo nasal]) são usados com menor frequência.12


c) Avaliação por imagem


A radiografia simples da rinofaringe é útil para o diagnóstico de obstrução nasal por hipertrofia da tonsila faríngea (adenoide) ou por outros processos tumorais da rinofaringe. A dos seios paranasais (incidências de Caldwell e Waters) não tem papel no diagnóstico da rinite alérgica.26


A tomografia computadorizada e a ressonância nuclear magnética de seios paranasais podem ser necessárias na avaliação de quadros inflamatórios e infecciosos crônicos sinusais, em complicações de quadros infecciosos agudos e na avaliação de processos tumorais benignos e malignos.26


d) Avaliação complementar


Sabe-se que a rinite alérgica gera elevado impacto sobre a vida dos pacientes e de seus parentes. Recentemente foram idealizados questionários autoaplicáveis que permitem uma avaliação mais ampla dos pacientes e assim possibilitam abordagem terapêutica mais personalizada e abrangente. Entre eles destacam-se os que avaliam distúrbios do sono e os de qualidade de vida.


Distúrbios relacionados ao sono (DRS) têm associação com fatores ambientais, sociais, culturais, biológicos, familiares e emocionais e geralmente são pouco relatados e consequentemente não valorizados e investigados.27,28 A polissonografia, considerada o padrão-ouro para o diagnóstico de DRS, é uma avaliação objetiva, entretanto seu custo é elevado, é de difícil feitura, o que limita seu uso em estudos populacionais. Diários de sono são baratos, mas requerem tempo para preenchimento e são difíceis de interpretar.28


Recentemente, questionários escritos têm sido desenvolvidos para avaliação de DRS em diversas faixas etárias. São autoadministrados e de fácil aplicação, com custo baixo e úteis para grandes estudos.29,30 Um exemplo é o Children's Sleep Habits Questionnaire (CSQH).31 Estudo recente documentou escore significativamente maior do CSHQ em crianças com asma e/ou rinite em comparação com crianças saudáveis, em especial naquelas nas quais a doença era mal controlada.32


Outros instrumentos que têm sido cada vez mais empregados no seguimento de pacientes com rinite alérgica são os questionários de qualidade de vida em saúde (Health Related Quality of Life, HRQL), pois permitem avaliar de forma mais ampla o quanto a doença interfere no dia a dia do paciente. São curtos, autoaplicáveis, de fácil entendimento e de baixo custo.33 São exemplos desses questionários: Rhinoconjunctivitis Quality of Life Questionnaire (RQLQ),34Mini Rhinoconjunctivitis Quality of Life Questionnaire (MiniRQLQ)35 e Pediatric Rhinoconjunctivitis Quality of Life Questionnaire (PRQLQ).36


Comorbidades


As principais comorbidades associadas à rinite alérgica são: asma, conjuntivite alérgica, rinossinusite aguda, crônica, otite média com efusão e as alterações do desenvolvimento craniofacial dos respiradores bucais em crianças, além de apneia e hipopneia obstrutiva do sono, tanto em crianças como em adultos.12


Tratamento


Constam do tratamento do paciente com rinite alérgica medidas não farmacológicas e medidas farmacológicas. As medidas não farmacológicas visam a reduzir a exposição do paciente aos agentes irritantes e/ou aos quais é sensibilizado. Embora haja discussão com relação aos efeitos dessas medidas de controle ambiental sobre o controle das alergias respiratórias, elas têm sido defendidas por vários pesquisadores.37 A tabela 2 reúne as principais medidas a serem tomadas para um controle ambiental efetivo.16


Tabela 2 Medidas de controle do ambiente16  


- O quarto de dormir deve ser preferentemente bem ventilado e ensolarado. Evitar travesseiro e colchão de paina ou pena. Use os de espuma, fibra ou látex, sempre que possível envoltos em material plástico (vinil) ou em capas impermeáveis aos ácaros. O estrado da cama deve ser limpo duas vezes por mês. As roupas de cama e cobertores devem ser trocados e lavados regularmente com detergente e a altas temperaturas (>55 ºC) e secadas ao sol ou ar quente. Se possível a superfície dos colchões deve ser aspirada com um modelo potente de aspirador doméstico.

- Evitar tapetes, carpetes, cortinas e almofadões. Dar preferência a pisos laváveis (cerâmica, vinil e madeira) e cortinas do tipo persianas ou de material que possa ser limpo com pano úmido. No caso de haver carpetes ou tapetes muito pesados, de difícil remoção, devem ser aspirados se possível duas vezes por semana após terem sido deixados ventilar.

- Camas e berços não devem ser justapostos à parede. Caso não seja possível, coloque-a junto à parede sem marcas de umidade ou a mais ensolarada.

- Evitar bichos de pelúcia, estantes de livros, revistas, caixas de papelão ou qualquer outro local onde possam ser formadas colônias de ácaros no quarto de dormir. Substitua-os por brinquedos de tecido para que possam ser lavados com frequência.

- Identificar e eliminar o mofo e a umidade, principalmente no quarto de dormir, reduzir a umidade a menos de 50%. Verifique periodicamente as áreas úmidas de sua casa, como banheiro (cortinas plásticas do chuveiro, embaixo das pias etc.). A solução diluída de água sanitária pode ser aplicada nos locais mofados, até sua resolução definitiva, mesmo porque são irritantes respiratórios. É essencial investigar outras fontes de exposição aos fungos fora do domicílio (creche, escola e locais de trabalho).

- Evitar o uso de vassouras, espanadores e aspiradores de pó comuns. Passar pano úmido diariamente na casa ou usar aspiradores de pó com filtros especiais 2x/semana. Afastar o paciente alérgico do ambiente enquanto se faz a limpeza.

- Ambientes fechados por tempo prolongado (casa de praia ou de campo) devem ser arejados e limpos pelo menos 24 horas antes da entrada dos indivíduos com alergia respiratória.

- Evitar animais de pelo e pena, especialmente no quarto e na cama do paciente (ambiente seguro). Manter a porta do quarto sempre fechada. Se for impossível, restringir o animal a uma única área da moradia e usar purificadores HEPA no quarto do paciente. Preferencialmente, animais de estimação para crianças alérgicas são peixes e tartarugas.

- Evitar a exposição aos alérgenos de camundongos e ratos com intervenção profissional integrada aos cuidados de limpeza da moradia; inclusive a colocação de armadilhas, vedação de furos e rachaduras que possam atuar como pontos de entrada e a aplicação de raticida, nos casos de grandes infestações.

- A inspeção é passo importante no extermínio de baratas. Evitar inseticidas e produtos de limpeza com forte odor, usar o método de iscas. Exterminar baratas e roedores pode ser necessário.

- Remover o lixo e manter os alimentos fechados e acondicionados, pois esses fatores atraem os roedores. Não armazenar lixo dentro de casa.

- Dar preferência às pastas e aos sabões em pó para limpeza de banheiro e cozinha. Evitar talcos, perfumes, desodorantes, principalmente na forma de sprays.

- Não fumar e nem deixar que fumem dentro da casa e do automóvel. O tabagismo pré-natal, perinatal e pós-natal está associado a problemas respiratórios futuros na prole.

- Evitar banhos extremamente quentes e oscilação brusca de temperatura. A temperatura ideal da água é a temperatura corporal.

- Dar preferência à vida ao ar livre. Esportes podem e devem ser praticados, evitar dias com alta exposição aos pólens ou poluentes em determinadas áreas geográficas.

- Recomenda-se aos pacientes alérgicos ao pólen manter as janelas da casa e do carro fechadas durante o dia, abri-las à noite (menor contagem de pólens). Os sistemas de ventilação de casa e do carro devem ser equipados com filtros especiais para pólens. Máscaras protetoras e óculos são úteis. Os pólens podem ser transportados para dentro de casa nas roupas e em animais domésticos. Evite deixar as roupas para secar ao ar livre, se possível use secadora automática.

- Evitar atividades externas nos períodos de alta contagem de pólens, entre 5h e 10h e em dias secos, quentes e com ventos.

- Manter os filtros dos aparelhos de ar condicionado sempre limpos. Se possível limpe-os mensalmente. Evitar a exposição a temperatura ambiente muito baixa e oscilações bruscas de temperatura. Lembrar que o ar condicionado é seco e pode ser irritante.

Como medidas farmacológicas destacamos as diferentes classes de medicamentos habitualmente usados na abordagem terapêutica dos pacientes com rinite alérgica: anti-histamínicos H1 isolados (anti-H1; sistêmicos ou tópicos), descongestionantes (sistêmico, tópico nasal), corticosteroides (sistêmico, tópico nasal), cromoglicato dissódico, antagonistas de receptores de leucotrienos. Além desses, a solução salina, a imunoterapia alergenoespecífica e, mais recentemente, agentes imunobiológicos têm composto o arsenal terapêutico de pacientes com rinite alérgica.12


Os anti-H1 são considerados medicamentos de primeira linha no tratamento da RA, sobretudo os de segunda geração ou não clássicos.2,3,7 Por atuar sobre o receptor H1 da histamina, aliviam de forma eficaz os sintomas da fase imediata da RA, como o prurido nasal, os espirros, a rinorreia e os sintomas oculares associados, e parcialmente o bloqueio nasal, característico da fase tardia da doença.38 Por serem menos lipofílicos e terem baixa passagem pela barreira hematoencefálica, fixam-se pouco aos receptores H1 cerebrais e consequentemente causam menos efeitos adversos sobre o sistema nervoso central como sedação.39


Os anti-H1 de segunda geração tem início rápido de ação e são medicamentos para uso por tempo variável (uma a quatro semanas), podem também ser usados por tempo prolongado em casos moderados-graves e persistentes. Em virtude de seu excelente perfil de segurança e vantagens terapêuticas no tratamento da rinite alérgica, os anti-H1 de segunda geração devem ser sempre priorizados em relação aos compostos mais antigos para todas as faixas etárias.40-42


Além das formulações orais, atualmente são disponíveis anti-histamínicos para uso tópico nasal e ocular. Os anti-H1 tópicos nasais têm eficácia similar aos compostos orais e apresentam como vantagem terapêutica início de ação mais rápido e maior efetividade no controle da obstrução nasal.43-45


Os descongestionantes nasais são estimulantes adrenérgicos ou adrenomiméticos, cuja ação principal é a vasoconstrição, produzem alívio rápido do bloqueio nasal na rinite alérgica.46 De acordo com a via de aplicação, são divididos em dois grupos: oral e tópico nasal. A pseudoefedrina é o descongestionante oral mais usado, seguido pela fenilefrina. No Brasil, só estão disponíveis em combinação com anti-H1. A pseudoefedrina deve ser usada com cautela em função de sua ação psicotrópica e de seus potenciais efeitos colaterais cardiovasculares. Não é recomendada para pacientes menores de quatro anos, pelo maior risco de toxicidade, e as formulações de liberação prolongada com doses de 120 mg não são recomendadas para menores de 12 anos.46,47 Os descongestionantes tópicos nasais devem ser usados no máximo por até 5-7 dias, pois o uso prolongado aumenta o risco de rinite medicamentosa, muitas vezes de difícil resolução. Além disso, podem causar efeitos cardiovasculares importantes, assim como no sistema nervoso central (derivados imidazólicos), são contraindicados em crianças menores de seis anos. Também devem ser evitados em idosos, em função da maior incidência de hipertensão e retenção urinária com seu uso nessa faixa etária.46


A associação de oximetazolina e furoato de mometasona para uso tópico nasal acompanhou-se por início rápido de ação, melhor eficácia sobre o bloqueio nasal e redução do tamanho dos pólipos, em pacientes com rinite alérgica sazonal e polipose nasal, em comparação com os fármacos administrados de forma isolada.48,49


Os corticosteroides, potentes agentes anti-inflamatórios, têm sido muito usados no tratamento de várias doenças, inclusive as alérgicas. Em pacientes com rinite alérgica os corticosteroides sistêmicos são reservados a pacientes com exacerbações graves ou formas graves de rinite alérgica sempre por curto período (cinco a sete dias) para prevenção de efeitos adversos decorrentes do uso prolongado.2,12 Entretanto, a administração parenteral de corticosteroides (conhecidos como de depósito; ação prolongada) é proscrita no manejo da rinite, em especial em crianças e idosos, devido aos efeitos adversos sistêmicos.12 Estudo recente avaliou a ação da associação desloratadina (0,5 mg/mL) e prednisolona (4 mg/mL) durante sete dias em crianças (dois a 12 anos) em crise aguda grave de rinite alérgica e documentou controle significativo dos sintomas nas primeiras 24 horas de tratamento, acompanhada por menor incidência de eventos adversos, sobretudo sonolência.50


Já os corticosteroides tópicos nasais (CN) apresentam perfil de segurança mais amplo, o que possibilita seu uso por períodos de tempo mais prolongados e são o tratamento anti-inflamatório de escolha advogado pela maioria dos especialistas que tratam a rinite alérgica (de várias sociedades médicas1-3,8,12,51). Os corticosteroides tópicos nasais também têm se mostrado efetivos no controle de rinites ocupacional, gestacional e idiopática.51


Os CN melhoram a congestão nasal, a alteração do olfato, a coriza, os espirros, o prurido nasal e os sintomas oculares associados, esses últimos por possível ação no reflexo naso-ocular (rinoconjuntivite alérgica). Seu uso leva a melhoria na qualidade de vida, na qualidade de sono e na concentração diurna. O tratamento com CN reduz também o risco de complicações como a rinossinusite, a otite secretora e a asma.1,2,12


No Brasil as formulações de CN disponíveis são: dipropionato de beclometasona (BDP), budesonida (BUD), propionato de fluticasona (FP), furoato de mometasona (MF), furoato de fluticasona (FF) e ciclesonida (CIC). Os CN liberados para uso em maiores de dois anos são o MF e o FF; para maiores de quatro anos a BUD e o FP enquanto que acima dos seis anos são o BDP e a CIC.12 O início da ação dos CN ocorre em sete a 12 horas após sua administração, mas os pacientes devem ser notificados de que o efeito terapêutico final pode demorar até 14 dias para ser atingido.12,51 Embora todos tenham ação anti-inflamatória, diferem em suas características farmacodinâmicas e farmacocinéticas, o que lhes garante diferentes perfis de segurança.51


Estudos mostram que o efeito terapêutico dos CN depende não apenas da efetividade da substância ativa, mas também da deposição do produto na cavidade nasal (spray ou aerossol),51,52 de sua afinidade pelo receptor de glicocorticoide e da relação concentração-tempo no local da atuação e a lipofilia é fator importantes no efeito terapêutico e no do potencial de atingir a circulação sistêmica (disponibilidade sistêmica) e da sua eliminação.51,52 Acredita-se que o CN ideal deveria apresentar alta lipofilia, baixa disponibilidade sistêmica e elevado clearance sistêmico.52,53


Os efeitos adversos dos CN são, em sua maioria, dependentes da disponibilidade sérica, que é diminuída pela capacidade do fármaco de ligar-se a proteínas plasmáticas. A nova geração de CN exibe alta afinidade de ligação às proteínas plasmáticas: FF, FM e CIC ligam-se em 99%; FP em 90%, BUD em 88% e DPB em 87%, o que afeta sua biodisponibilidade sistêmica.53,54


Os principais efeitos adversos relacionados ao uso de CN são locais (irritação local, sangramento, perfuração septal), podem ser observados com qualquer dos produtos usados e são dependentes da dose usada e da técnica de aplicação. Em relação aos efeitos adversos sistêmicos (interferência sobre o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, efeitos oculares, efeitos sobre o crescimento, reabsorção óssea e efeitos cutâneos), podem ocorrer segundo a idade do paciente, a dose usada e a farmacocinética do produto.53,54


Embora sejam apontados como seguros, mesmo em pequena escala, todos os CN são absorvidos sistemicamente em alguma porção e podem exibir efeitos adversos. Os efeitos dos CN em crianças e em gestantes são semelhantes aos observados em pacientes adultos.54 Entretanto, o uso dos CN em gestantes exige maior ponderação, uma vez que há sempre a preocupação com a embriogênese. A BUD é o único CN que entra na categoria B para uso na gravidez, com a ressalva da prescrição na menor dose e tempo possíveis.55


A associação de anti-H1 (cloridato de azelastina) e CN (propionato de fluticasona) para uso tópico, em dispositivo único, incialmente indicada para pacientes maiores de 12 anos, com sintomas persistentes moderados ou graves e sem controle com anti-H1 e/ou CN,55-58 mostrou-se eficaz e segura em crianças a partir dos quatro anos.59,60


Estudos em pacientes com rinite alérgica compararam o tratamento com a associação e os componentes administrados de modo isolado e revelaram ser a associação mais efetiva no controle desses pacientes,55-60 sem perda de sua ação mesmo quando administrados por tempo prolongado.61 A incidência de eventos adversos tem sido similar à observada com os pacientes tratados com placebo. Até o momento não há dados suficientes sobre segurança de seu uso em mulheres grávidas ou em amamentação.55,61


O cromoglicato dissódico tem ação estabilizadora sobre a membrana de mastócitos e, consequentemente, impede a ação dos mediadores químicos liberados por essas células durante a reação alérgica. São superiores ao placebo, porém muito menos eficazes quando comparados com aos anti-H1 e os CN, no controle da rinorreia, dos espirros e do prurido nasal, além de pouco atuar sobre a obstrução.2,62 Apresenta excelente perfil de segurança, torna-se uma opção terapêutica aceitável em lactentes, faixa etária em que os CN não são liberados.2,62 Devido à sua curta meia-vida, deve ser administrado de quatro a seis vezes ao dia, o que dificulta a adesão ao tratamento.


O montelucaste sódico (MS) é o único composto representante dos antagonistas de receptores de leucotrienos existente no Brasil. Tem superioridade reconhecida ao placebo no controle dos sintomas e na melhoria da qualidade de vida de pacientes com rinite alérgica.63-65 Embora o MS não seja a primeira escolha para o tratamento de pacientes com rinite alérgica, tem sido apontado como uma opção terapêutica para os pacientes com asma e rinite alérgica concomitante66 e naqueles com dificuldade de adesão aos regimes de tratamento com medicação tópica nasal. Além disso, podem ser considerados nos casos de rinossinusite crônica com polipose nasal, na doença respiratória exacerbada por aspirina (AERD).


Recentemente uma associação entre um anti-H1 (levocetirizine 5 mg + montelucaste de sódio 10 mg) para indivíduos maiores de 18 anos foi disponibilizada para uso.67 Estudos em adultos mostram que a terapia combinada é superior a ambas as medicações quando administradas de modo isolado.68-70


A imunoterapia alergenoespecífica (ITE) permanece como o único tratamento modificador da doença alérgica.71 Além disso, proporciona benefícios duradouros após a sua descontinuação,72 previne a progressão da doença, inclusive o desenvolvimento de asma,73,74 bem como o desenvolvimento de novas sensibilizações.75-77


A ITE é recomendada no tratamento de adultos e crianças (> 5 anos) com rinite alérgica moderada/grave intermitente e em todas as formas persistentes,77 sempre por especialista em alergologia. A indicação da ITE deve estar fundamentada na comprovação da sensibilização alergenoespecífica por métodos in vivo ou in vitro, na relevância do(s) alérgeno(s) no desencadeamento de sintomas, na impossibilidade de evitar a exposição ao(s) alérgeno(s) e na disponibilidade de extrato alergênico padronizado e comprovadamente eficaz.12,78 É procedimento terapêutico de longa duração.


São contraindicações absolutas de ITE: asma não controlada, doença autoimune ativa, neoplasia maligna, crianças menores de dois anos e pacientes com infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV). São contraindicações relativas: asma parcialmente controlada, doença autoimune em remissão, uso de betabloqueadores, doenças cardiovasculares, crianças entre dois e cinco anos, infecção pelo HIV (classificação A e B; CD4 > 200 células/mm3), infecções crônicas, imunodeficiências e uso de imunossupressores.79


A lavagem nasal com soluções salinas tem sido empregada como coadjuvante no tratamento de afecções nasais agudas e crônicas. Por ser método barato, prático e bem tolerado tornou-se muito difundido. O uso da solução salina facilita a remoção de secreções, promove consequentemente alívio sintomático aos pacientes.51 No caso específico das rinites inflamatórias e alérgicas, a lavagem nasal também promove a remoção de mediadores inflamatórios presentes no muco nasal, atua assim na melhoria do quadro.51 A solução salina isotônica deve ser usada 1-2x ao dia, como tratamento adjuvante na rinite alérgica.80 A observação clínica recomenda a lavagem nasal prévia antes da aplicação de outros medicamentos tópicos nasais.


Agentes biológicos (anticorpos monoclonais humanos ou humanizados) desenvolvidos para o tratamento da asma grave têm sido usados, com bons resultados, em outras doenças, como urticária crônica, rinossinusite crônica, polipose nasal e rinite alérgica. Sintetizados por organismos vivos e direcionados contra um determinante específico, por exemplo, uma citocina ou seu receptor.81 A identificação de diferentes vias moleculares que têm significado clínico contribuiu para estabelecer os alvos do tratamento e levou à identificação dos endotipos descritos em asmáticos e que poderiam muito bem ser transferidos à rinite alérgica.82


Em doenças alérgicas os alvos contra os quais foram desenvolvidos agentes biológicos são: IgE, citocinas promotoras de resposta Th2, como IL-4, IL-5, IL-9, IL-13, IL-31, e TSLP, receptor para quimiocinas CCR4 e moléculas de superfície e adesão CD2, CD11a, CD20, CD25, CD52 e ligante OX40. No entanto, há poucas evidências de uso de biológicos em rinite alérgica.


Metanálise avaliou a eficácia e segurança de omalizumabe em pacientes com rinite alérgica não controlada e o associou de modo significante a alívio de sintomas, redução do consumo de medicação de resgate e melhoria da qualidade de vida nesses pacientes.83 O omalizumabe é, em geral, bem tolerado e a sua readministração não é seguida pela formação de anticorpos contra a medicação, portanto não se mostrou imunogênico.84 Além disso, a adição de anti-IgE à imunoterapia alérgeno específica reduziu o índice de reações sistêmicas à ITE.85-87


Biológicos, inclusive anti-IL-5 (mepolizumabe, reslizumabe) e anti-IL4/13 (dupilumabe), foram estudados em pacientes com diferentes condições, mas a eficácia não ocorreu em todos os pacientes. O alvo desses biológicos são moléculas específicas que participam dos mecanismos patogenéticos da asma, rinite, dermatite atópica e rinossinusite crônica.88 O que se espera é o controle das doenças pela redução da inflamação imunológica e da produção de anticorpos IgE. Há necessidade de estudos delineados para avaliar a ação desses recursos terapêuticos com desfecho primário na rinite alérgica.89


Avaliação do controle clínico


De modo semelhante ao observado em diversas doenças crônicas, como a asma e a urticária crônica, o conceito de controle clínico na rinite tem sido valorizado nos últimos anos. Esse conceito pode ser definido como o nível no qual os objetivos do manejo da doença são alcançados pelo tratamento instituído.90


Diferentemente do nível de gravidade da doença, critério classicamente empregado para definir o tratamento da rinite,2 o controle da rinite parece ser um critério mais adequado para nortear o seu tratamento.90 Entretanto, a avaliação do controle da doença deve ser personalizada e nada substitui o adequado seguimento da rinite alérgica no contexto da relação médico-paciente. Diversos instrumentos foram desenvolvidos com o objetivo de auxiliar a avaliação do controle da rinite por médicos e/ou atuar na triagem de pacientes não controlados na atenção primária.90,91 Entre eles destacam-se a escala visual analógica (EVA) e questionários/escores de avaliação. A EVA foi recentemente proposta por algumas organizações e sociedades médicas como ferramenta para a autoavaliação rotineira do paciente e como método auxiliar no manejo do tratamento farmacológico.4,92,93


Os questionários/escores de avaliação de controle, propostos mais recentemente, diferem no enfoque dado ao conceito de controle, ora abordam mais intensamente os sintomas da doença, ora valorizam o impacto das consequências da rinite nas atividades e na vida diária. Além disso, observam-se questionários específicos para a avaliação da rinite e questionários que abordam simultaneamente a rinite e a asma. Entre esses destacam-se: Rhinitis Control Assessment Test (RCAT),94,95Rhinitis Control Scoring System (RCSS)96 e Allergic Rhinitis Control Test.97 O Control of Allergic Rhinitis and Asthma Test (CARAT) foi idealizado para avaliar conjuntamente o controle de pacientes com asma e rinite em adolescentes e adultos98 e o Control of Allergic Rhinitis and Asthma Test - Kids (CARATkids) para crianças de seis a 12 anos.99


Tratamento cirúrgico


O tratamento cirúrgico na rinite alérgica tem por finalidade corrigir as alterações anatômicas nasossinusais crônicas associadas. Isso é especialmente válido para pacientes com obstrução nasal refratária ao tratamento clínico e que apresentam hipertrofia da concha inferior.41 Os benefícios relatados por estudos observacionais indicam potencial melhoria da respiração e consequente melhoria na qualidade de vida, assim como a melhor distribuição dos medicamentos tópicos na cavidade nasal.40


Até o momento, nenhuma técnica foi estabelecida como padrão-ouro. A seleção da técnica a ser empregada é individualizada e depende de fatores como, por exemplo, maior ou menor componente ósseo ou mucoso da concha inferior, experiência do cirurgião, equipamentos disponíveis, custo, entre outros.100


CONSIDERAÇÕES FINAIS


Com base nas recomendações para tratamento da rinite alérgica publicadas pela iniciativa ARIA2,4,5 e pela Academia Europeia de Alergia e Imunologia, Americana de Asma, Alergia e Imunologia9 e Americana de Otorrinolaringologia,40 propusemos o fluxograma para o tratamento (figura 1).



Figura 1 Fluxograma de tratamento para a rinite alérgica. 


☆Como citar este artigo: Sakano E, Sarinho ES, Cruz AA, Pastorino AC, Tamashiro E, Kuschnir F, et al. IV Brazilian Consensus on Rhinitis - an update on allergic rhinitis. Braz J Otorhinolaryngol. 2018;84:3-14.


☆☆Documento de posição conjunta da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia, da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Crânio-Facial e da Sociedade Brasileira de Pediatria.


A revisão por pares é da responsabilidade da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial.

segunda-feira, 25 de abril de 2016




ARTIGO
Gestaltic style of clinical intervention in neurotic adjustments.
Marcos José Muller-Granzotto
Universidade Federal de Santa Catarina - Florianópolis (SC) mullergranzotto@gestalten.com.br
Instituto Gestalten - Florianópolis (SC) mullergranzotto@gestalten.com.br
Consiste o presente artigo numa leitura sobre o estilo de intervenção que se deixa reconhecer na prática clínica da Gestalt-terapia, tal como esta é caracterizada na literatura de base da abordagem, especialmente no que diz respeito aos ajustamentos neuróticos. Nosso propósito é esclarecer em que sentido a prática clínica é, para a Gestalt-terapia, uma experiência de campo e em que sentido os temas da frustração habilidosa e do suporte comparecem nos contextos em que podemos perceber a presença de um ajustamento neurótico.
Palavras-chave: ajustamento neurótico; inibição reprimida; frustração habilidosa; experimento; experiência de campo.
The present article consists of a reading on the style of intervention acknowledged in the Gestalt-therapy clinical practice, such as it is characterized in the base approach literature, especially what concerns neurotic adjustments. Our purpose is to make clear in which sense the clinical practice is, for Gestalt-therapy, a field experience and in which sense skillful frustration and support themes are present in the context in which we can sense the presence of a neurotic adjustment.
Keywords: Neurotic adjustment; repressed inhibition; skillful frustration; experiment; field experience.
Não são poucos, mesmo entre os próprios praticantes da Gestalt Terapia, aqueles que consideram tal abordagem clínica uma coleção de técnicas úteis à prática psicoterapêutica concebida, entrementes, a partir de um outro referencial teórico, dado que a Gestalt-terapia estaria desprovida de um. E não se trata aqui de fazer a refutação desse equívoco - uma vez que não se pode argumentar contra aquilo que não faz sentidoi. Trata-se, antes, de mostrar o quanto os recursos clínicos adotados pelos gestalt-terapeutas - que levam em conta o sentido ético dessa prática clínica e, portanto, o primado daquilo que nela gera uma deriva, precisamente, o "outro” - estão articulados com as reflexões que, já na fundação da abordagem, se faziam presentes: a teoria do self, a teoria da inibição reprimida, a teoria da neurose como perda das funções de ego para a fisiologia secundária, as quais, dentre outras, são tão somente leituras possíveis daquilo que se estabelece espontaneamente na sessão terapêutica. Ademais, é preciso acrescentar não haver, na história da Gestalt-terapia, qualquer sorte de recomendação sobre quais técnicas usar ou evitar. Afinal, sendo a vivência clínica uma experiência de campo em que se constitui um sistema-self e sendo a espontaneidade a principal propriedade desse sistema, é de se supor que as formas de "pontuação do como” estabelecidas pelos clínicos sejam fundamentalmente intervenções criativas e exclusivas a cada ajustamento vivido. Ainda assim, podemos encontrar no livro de fundação da abordagem uma reflexão sobre o sentido ético de algumas formas de ajustamento e de intervenção estabelecidos em regime clínico - e que podem pautar aquelas inventadas por nós mesmos a cada nova sessão.
A chegada dos consulentes é uma ocorrência de extrema relevância para o clínico. Afinal, já nesse "contato inicial” o clínico pode perceber - em função do lugar que é ou não convidado a ocupar - a presença das funções de self ou o comprometimento de alguma delas.
Evidentemente, essas funções e respectivos comprometimentos não são ocorrências "visíveis”. O que se mostra de modo visível são alguns cerimoniais, alguns comportamentos socialmente sancionados, especialmente pela "cultura” psicoterapêutica, como por exemplo: as posturas sedutoras ("ouvi dizer que o doutor é...” ou "não acredito em psicoterapia...”), as posturas desafiadoras ("o que o doutor sabe sobre isso?”), posturas exibicionistas ("já fiz seis anos de análise...” ou "tenho algo horrível para lhe dizer...”), as autovitimizações ("não sei se posso pagar o valor de sua sessão...”) dentre outros infinitos expedientes, os quais sempre carregam, como sua dimensão invisível, um "apelo” a nossa participação. Ou, então, somos surpreendidos pela total ausência de apelos, como se o consulente não tivesse consulta a fazer, como se não tivéssemos nada a lhe oferecer. Nossa presença para ele é tão contingente quanto à do quadro artístico pendurado na parede. Ou, ainda, deparamo-nos com consulentes, sobretudo usuários da rede pública ou dos serviços substitutivos de saúde, os quais, não obstante tentarem apelar por nossa intervenção, comportam-se como se não soubessem fazê-lo, como se lhes faltassem aqueles expedientes socialmente sancionados.
De toda sorte, essas formas "visíveis” de apresentação geram um "efeito invisível” em nós mesmos (como clínicos). Somos convocados a ocupar um lugar em um "campo” pelo qual não deliberamos. E quanto mais cedo nos deixamos conduzir a esse lugar, mais rapidamente vislumbramos, como a um "outro” com quem, ainda assim, não podemos coincidir: i) tentativas criativas de aniquilação ou disfarce de excitamentos ansiogênicos, ii) tentativas de preenchimento ou articulação de excitamentos que não são sentidos como se fossem próprios, iii) buscas desesperadas por dados que não estão disponíveis. Quanto mais cedo nos deixamos conduzir a esses lugares para os quais estamos sendo convocados, mais rapidamente percebemos o tipo de ajustamento que os consulentes estão tentando estabelecer e, por consequência, qual função do self em cada qual está comprometida. Por outras palavras: a percepção das funções comprometidas, dos ajustamentos estabelecidos, da satisfação possível alcançada por cada consulente, tudo isso passa pela capacidade que nós terapeutas devemos ter de nos deixar descentrar. Ou, ainda, a percepção desses "invisíveis” tem relação, para nós clínicos, com nossa passividade ao campo.
No caso dos consulentes em quem testemunhamos buscas desesperadas por dados que não estão disponíveis, se os dados realmente não estiverem disponíveis (por exemplo, um pouco de alimento que pudesse ser oferecido a um desempregado subnutrido, em crise de hipoglicemia, encaminhado ao psicólogo de um posto de saúde), a função de ego neles não poderá ser desenvolvida. Consequentemente, o contato não poderá acontecer e nada poderá ser assimilado, nem mesmo uma identidade objetiva, base constitutiva da função personalidade. É provável que estejamos diante de um ajustamento aflitivo. Não é nosso objetivo, por ora, dissertar sobre os ajustamentos aflitivos e sobre as formas de intervenção gestáltica nesses casos. Mas desde já alertamos para a importância dessa clínica e a urgência em desenvolvê-la junto à nossa comunidade.
Se pudermos, entretanto, observar junto aos consulentes uma função de ego desempenhando uma ação qualquer, é preciso atentar para qual lugar essa ação nos reserva (enquanto terapeutas). Ou essa ação acontece à revelia de nossa presença no campo; o que não significa que, em alguns momentos, não possamos ser convocados a atuar como "figurantes”, meros colaboradores dos reais protagonistas da ação, precisamente: as funções de ego que estejam fazendo um ajustamento psicótico (como no caso daqueles consulentes que tentam preencher ou articular excitamentos que eles próprios não demonstram sentir como seus). Ou, então, essa ação nos implica diretamente como agentes "co-adjuvantes”, como se a função de ego nesse campo dependesse de nossa participação efetiva - caso em que, provavelmente estaremos envolvidos em um ajustamento neurótico. Esse é o caso daqueles consulentes que, para aplacar a ansiedade decorrente de um excitamento que eles próprios estejam a inibir de maneira habitual, "apelam” por nossa intervenção direta, "apelam” para que assumamos uma determinada função em favor da aniquilação da ansiedade por eles sentida: "modelos” a quem eles possam imitar na esperança de preencherem o vazio ansiogênico que os afeta; "mestres” que os ensinem a suportar uma ansiedade que não pode ser mais ignorada; "réus” em quem reconheçam a causa da ansiedade que os atinge; "cuidadores” de quem esperam um linimento que, enfim, abrande a ansiedade que os torna vítimas; "admiradores” em quem encontram confirmação para continuar adiando a realização do excitamento ansiogênico.
No caso dos ajustamentos neuróticos, os únicos que nos interessam por ora, os apelos dirigidos ao clínico estão frequentemente relacionados às diversas formas de interrupção da expansão da ansiedade pelas etapas do processo de contato. O apelo é ele mesmo a ação da inibição reprimida, que assim tenta pulverizar a ansiedade decorrente das ameaças de deflagração do excitamento inibido desencadeadas pela situação clínica. Ou, então, o apelo é a própria realização social da inibição reprimida em regime clínico. Não se trata, ao menos nas primeiras sessões, de um ataque ao clínico, mas de uma tentativa de inclusão deste.
O clínico é requisitado a participar dos ajustamentos neuróticos desempenhados pelo consulente. Ele é convidado a ajudar o consulente no trabalho de produção de um sintoma, o qual mais não é que a própria interrupção do excitamento ansiogênico nas diversas etapas do processo de contato.
Quando o consulente dirige ao clínico o apelo "seja meu mestre” é à presença da ansiedade no momento do "pré-contato” que se trata de aplacar. Caso exercesse a função de mestre, o clínico estaria corroborando um ajustamento introjetivo. Quando dirige ao clínico o apelo "seja meu réu” é à presença da ansiedade no momento do "contatando” que o consulente tenta dissipar. O clínico que assumisse essa função estaria ratificando um ajustamento projetivo.
Também o apelo "seja meu cuidador” diz respeito ao momento do "contatando”. Mas, agora, o clínico é convocado a validar a retroflexão que o consulente imputa a si mesmo, também com o propósito de aniquilar a ansiedade.
No caso de o apelo ao clínico ser "seja meu fã”, o consulente está tentando implicar o clínico em um ajustamento egotista. Caso validasse às múltiplas formas de controle que o consulente tenta exercer sobre sua própria vida, o clínico pouparia o consulente de ter de enfrentar a ansiedade implicada no "contato final”.
O apelo "seja meu modelo”, a sua vez, é uma tentativa do consulente de empenhar o clínico no trabalho de dissolução da ansiedade advinda do fato de não haver, para o próprio consulente, um excitamento disponível; haja vista a inibição reprimida ter interrompido a assimilação do excitamento no momento do "pós-contato”. O consulente tenta preencher esse vazio incorporando algo que ele solicita do próprio clínico. Caso fornecesse esse modelo, o clínico estaria ratificando um ajustamento confluente.
Mas, uma vez atingido pelo apelo que se configura no campo, uma vez descentrado no ajustamento que é para ele algo inopinado, o gestalt-terapeuta começa a perceber um modo de funcionamento nas mais das vezes ignorado pelo consulente. Se esse descentramento se produzir mais de uma vez, o gestalt-terapeuta terá então atingido, mais além do "assunto”, da "queixa”, enfim, das "personalidades” promulgadas pelo consulente, a vigência de uma ansiedade, de um excitamento inibido, o qual se presume associado a uma forma específica de inibição. O gestalt- terapeuta terá atingido a vigência de algo "outro”. Trata-se de algo "outro” não apenas para o clínico, mas, também, para o próprio consulente. Razão pela qual, não cabe ao clínico gestáltico identificar o excitamento inibido, ou a origem da inibição apresentada, tampouco exigir que o consulente o faça. Ao clínico gestáltico somente interessa pontuar, no curso da própria sessão, o momento exato em que esse "estranho” esteja se repetindo, o momento preciso em que ele torne a se produzir. Tal pontuação concorrerá para uma eventual implicação do consulente em seu próprio ajustamento. O campo clínico estará configurado. Uma figura "estranha”, "outra”, estará sinalizada. O que dará início à clínica gestáltica, ao trabalho não do clínico, mas do consulente.
A pontuação estabelecida pelo clínico relativamente ao momento em que ele mesmo é surpreendido pela repetição de um inesperado, no aqui/agora da sessão, é a pedra fundamental de todo e qualquer processo de intervenção gestáltica nos ajustamentos neuróticos. Essa pontuação pode acontecer em qualquer momento da primeira sessão, ou depois de transcorridas muitas sessões. O importante é que o clínico se deixe afetar por tal inesperado, no momento em que ele estiver se repetindo, porquanto ele é o "objeto” específico a partir do qual poderá propor, ao consulente, um contrato terapêutico.
No caso da clínica dos ajustamentos neuróticos, não interessa ao clínico dar conta dos assuntos ou problemas formulados pelo consulente em termos de queixa; ainda que, no início, antes do estabelecimento do contrato, o consulente possa esperar soluções para os problemas corriqueiros que esteja a formular. Mas, tão logo o consulente estabeleça na sessão um ajustamento de evitação ou de criação em que ele próprio se surpreenda, o clínico tem a ocasião ética de esclarecer, enfim, qual é o "objeto” da clínica gestáltica dos ajustamentos neuróticos, precisamente: a pontuação das "formas” (gestalten) de evitação, ou de criação, nas quais, por obra do próprio consulente, o clínico foi envolvido. Evidentemente, o clínico vai se servir dos próprios elementos discursivos e comportamentais fornecidos pelo consulente para pontuar a eventual manifestação de uma forma de evitação. Ainda assim, deixará claro que a questão clínica pela qual o consulente pagará não diz respeito às representações objetivas produzidas por este; diz respeito sim à manifestação de algo espontâneo, surpreendente, que foge ao controle das representações deliberadas estabelecidas seja pelo clínico seja pelo consulente.
Mais do que isso, o clínico esforçar-se-á para mostrar que tais formas não existem em um lugar prévio ou iminente, como se fossem conteúdos a serem descobertos ou buscados. Ao contrário, ao clínico cabe esclarecer que o objeto da terapia gestáltica (apareça ele como um ajustamento neurótico, como uma formação reativa ou como uma retomada da criatividade) é uma ocorrência atual, imanente ao aqui/agora da sessão, o que não significa que não inclua vivências passadas e expectativas futuras. Afinal, o aqui/agora é para o clínico um campo de presença; e os horizontes de futuro e de passado são desse campo dimensões co-participantes. Rigorosamente falando, o aqui/agora é a maneira pela qual se dá o "contato” entre nossos horizontes de passado e futuro. É a própria realização desse contato, que não é senão uma síntese de passagem apoiada em um dado material atual. A sessão terapêutica é esse dado, uma oportunidade para o consulente se apropriar do modo como ele vive essa passagem entre um passado imutável e novas possibilidades futuras. E o objeto da experiência clínica, a própria vivência atual da inibição ou da realização daquela passagem, daquele fluxo de contato temporal na atualidade da sessão.
A noção de aqui/agora como campo de presença fundamenta, ademais, uma leitura gestáltica do que seja o tempo da sessão. Do ponto de vista da experiência de contato, o tempo da sessão não diz respeito ao relógio, ao cronômetro, mas à configuração de uma síntese de passagem, por cujo meio se revele uma "gestalt”; seja esta uma forma habitual de inibição dos próprios excitamentos, uma formação reativa desencadeada pela inibição reprimida ou uma criação inédita a partir de um fundo de angústia.
O tempo de uma sessão é, portanto, o tempo de revelação de uma "gestalt” em que há manifestação de uma inibição reprimida, ou a superação dela. Tal pode levar segundos, como pode não acontecer por meses a fio. Isso não significa que o clínico tenha de abandonar o relógio. A forma de trabalho de Perls (1973, p. 106), nesse particular, ajuda-nos a elaborar uma compreensão sobre a forma de utilização do tempo cronológico em benefício da manifestação do tempo do contato (tempo vivido). Em seus trabalhos de demonstração (workshops) - os quais mais não eram que "terapias individuais em contextos de grupo”, Perls (1973, p. 105) não cronometrava os atendimentos. Quando muito, atinha-se a um limite máximo, que variava de grupo para grupo e também em função do número de participantes em cada grupo. Mas, tão logo uma forma de ajustamento evitativo fosse flagrada e dela o participante se apercebesse, ou um ajustamento criador fosse estabelecido para a surpresa do próprio consulente, o atendimento era encerrado. Às vezes isso levava minutos ou menos do que isso. Razão pela qual, é frequente os clínicos contratarem, com seus consulentes, sessões que tenham um teto cronológico máximo, o qual pode ser muito variado. Mas o estabelecimento desse teto não implica que ele deva ser cumprido. Implica apenas que, a cada sessão, clínico e consulente disponham de até ‘X’ minutos para pontuarem o surgimento de um inesperado, a configuração de um ajustamento evitativo, de uma formação reativa ou de uma criação a partir de um estado de angústia. Qualquer um dos dois pode fazer essa pontuação. E quando ela estiver estabelecida, é hora de fechar a sessão, mesmo que o teto cronológico não tenha sido atingido. A continuidade da sessão não agregaria mais do que um falatório irrelevante, não raro devotado a solapar as conquistas da sessão até aquele momento.
Essa forma de entender o tempo da sessão também tem efeito sobre os temas da assiduidade e do atraso. Resguardado o acordo que possibilite, ao consulente e ao clínico, um tempo confortável de antecedência para cancelamento das sessões, as faltas não comunicadas constituem sessões realizadas, pelas quais o consulente irá pagar. Afinal, enquanto uma alta não for solicitada (pelo consulente) ou comunicada (pelo clínico), os "horários” de sessão contratados continuam surtindo efeito no clínico. E é dever ético do clínico "devolver” ao consulente esses efeitos para que este os elabore, sobretudo, por meio do pagamento.
O mesmo vale para os atrasos, que devem ser religiosamente descontados do tempo contratado para cada sessão. Em rigor, um consulente nunca está atrasado para a sessão. Ele simplesmente "deliberou” usar o tempo da sessão de outra forma; o que, ainda assim, surte um efeito no clínico, ainda assim o faz aguardar... A recíproca, entrementes, não é verdadeira. O retardo do clínico deve ser ressarcido, uma vez que, durante o período em que estava atrasado, o clínico não se ocupava do consulente. Portanto, não é ético que o clínico considere os atrasos que ele próprio provocou terapêuticos. A decisão de como ocupar o tempo da sessão é prerrogativa exclusiva do consulente - a menos que, antes do fim da sessão, o clínico possa pontuar, no consulente, a manifestação de um ajustamento de evitação, o qual, vale lembrar, é o objeto da terapia, o "fim” da sessão (na dupla acepção do termo fim: término e finalidade).
Da mesma forma, o intervalo entre as sessões, assim como o tempo do tratamento não são itens que possam ser, do ponto de vista do tempo vivido, acordados previamente. A necessidade das sessões, assim como a compreensão do momento da alta - da conquista da autonomia em relação ao clínico - são fenômenos de campo, sobre os quais o consulente deve deliberar. Exceção para o período de férias ou para a eventualidade de o clínico não se sentir mais disponível para acompanhar o consulente. Afora esses casos, cabe ao consulente, portanto, aumentar ou espaçar a distância entre as sessões ou decidir pelo fim do processo terapêutico.
Outro aspecto de suma importância e que diz respeito ao contrato terapêutico é o valor que o consulente vai pagar por cada sessão. Se o objeto da sessão terapêutica é a manifestação de uma inibição reprimida (via ajustamento neurótico ou formação reativa), ou o retorno da função de ego ao comando do processo de contato; e se esses acontecimentos têm antes relação com a configuração de um campo no qual o consulente é o principal protagonista; o pagamento não deve ser relacionado, exclusivamente e em primeiro lugar, com os honorários do profissional, mas com a importância que o consulente dá a seu próprio sintoma, ou ao seu próprio ajustamento criador. Por outras palavras, o pagamento não deve valorar o clínico, mas o quanto de importância o consulente dá a isso que ele ignorava de si, mas que na sessão veio à tona, precisamente: que ele é acometido de uma fisiologia secundária que interfere em sua regulação organísmica e social, mas, ainda assim, é capaz de ultrapassá-la. Por conseguinte, é muito importante que: no fechamento do contrato, o clínico vincule o objeto da experiência clínica - precisamente, as formas de evitação que o consulente imputa a si ou a revelação de uma capacidade criativa que o próprio consulente ignorava em si - e o valor que essas formas possam assumir na vida oficial desse mesmo consulente.
Tal vinculação vem ao encontro de algo que, tão logo o "objeto” do tratamento tenha sido pontuado e contratado, o consulente passa a admitir de si mesmo, a saber: que é ele próprio quem estabelece tal "objeto”, que é ele mesmo quem interrompe seus próprios excitamentos, ou que os elabora criativamente. Tal significa dizer que, o consulente "sabe” que o que vai ser tratado na experiência clínica tem relação consigo - e não com o clínico. É isso, ademais, o que torna o tratamento algo interessante para o consulente. É isso que gera vínculo. Se ignorasse esse "saber”, o clínico estaria correndo o risco de ambicionar maior importância que aquela que o consulente dá a si próprio.
Isso posto, abre-se para nós a possibilidade de comentar algo sobre o famoso "vínculo” terapêutico. Em rigor, este não é mais que o encantamento do consulente por suas próprias gestalten, por seus próprios modos de interrupção do processo de contato e, mais ainda, por suas próprias repetições disponíveis e inibidas, que são os excitamentos que constituem a função id. Engana-se aquele que pensa que o retorno do consulente à sessão tem relação com um suposto saber atribuído ao clínico. O consulente "sabe” que o clinicamente interessante, pelo qual ele vai pagar, vem dele mesmo, embora frequentemente formule o contrário, numa tentativa de manipulação neurótica. Nesse sentido, o consulente não faz vínculo com o clínico. Ele faz vínculo consigo, com isso que é outro para si. Acontece que esse outro só pode surgir numa relação de campo, onde as defesas do consulente contra isso que ele mesmo deseja sejam desafiadas. É aí que entra o clínico.
Evidentemente, para que o consulente possa se apropriar dos próprios ajustamentos neuróticos, ou de sua capacidade de recriação, ele necessita contar com a disponibilidade do clínico, necessita contar com a capacidade do clínico para se deixar arrebatar, descentrar. O clínico, em algum sentido, precisa abrir mão de suas próprias teorias, curiosidades, vaidades, enfim, personalidades, em proveito das formulações criativas e autônomas desempenhadas pelo consulente. E é por esse desprendimento que o clínico "cobra”.
Do ponto de vista do clínico, o valor da sessão em verdade paga o quanto o profissional "deixa” o consulente trabalhar. Gestalt-terapeutas que têm dificuldade para valorar e cobrar seu próprio trabalho (seja para mais ou para menos) não apenas depreciam ou supervalorizam seu ofício. Eles também conspiram contra a orientação ética do tratamento. Afinal, se o pagamento remunera o "quanto de autonomia” os clínicos asseguram aos seus consulentes, a falta de cobrança ou a cobrança a menor (ou, em alguns casos, a maior) demarcam a resistência desses clínicos em favorecer a "alforria” de seus acompanhados. Ou, ainda, a falta de cobrança ou a cobrança frequentemente a menor demarcam o apego dos clínicos ao lugar de poder a que foram conduzidos pelo "apelo” dos consulentes. Nesse sentido, é preciso ressaltar que os clínicos não são representantes oficiais dos consulentes, não são prestadores de serviço, não foram investidos no lugar de gestalt-terapeutas pela força dos contratos civis, dos preceitos morais ou dos códigos de defesa do consumidor. Por conseguinte, não podem cobrar por isso, não podem cobrar em nome dos contratos estabelecidos no campo da função personalidade.
É fato que os gestalt-terapeutas dão recibos, declaram seus rendimentos ao fisco, prestam informações não-sigilosas para sua categoria profissional ou para as autoridades civis de sua comunidade. Entretanto, essas delegações não são ofícios do clínico, mas de um profissional, de uma personalidade à qual o clínico se identifica, e com a qual precisa se identificar para poder atuar numa determinada comunidade objetiva. Mas não é algo com que o clínico deva operar quando efetivamente se ocupa do consulente. Dar recibos, preencher formulários, prontuários e etc. não é prática clínica. É exercício de uma personalidade, de uma função personalidade, a qual não é objeto da visada ética da clínica gestáltica dos ajustamentos neuróticos. A ética dessa clínica diz respeito ao que se mostra como "estranho”, como "outro”, diz respeito àquilo que está fora do alcance do clínico. Consequentemente, o clínico não tem nada a fazer por esse estranho, tampouco a cobrar. Ele só pode cobrar por sua diligência em não atender aos apelos desse estranho, depois de tê-los ouvido e não obstante continuar a ouvi-los.
Da mesma forma, o consulente não é um "cliente”, que paga por um serviço. Menos ainda um "paciente”, assujeitado a um saber médico, psicológico, jurídico, filosófico... O consulente é quem consulta, consulta a si mesmo em um campo onde o interlocutor, assim denominado "clínico”, permite àquele aperceber-se, tomar posse de seu próprio fluxo de awareness, ou do modo como o interrompe. Até que ele saia
da condição de consulente e seja para si mesmo um clínico, um desviante ou, para introduzirmos um neologismo: um ‘clinicante’.
Para Perls, Hefferline e Goodman, "(a) diagnose e a terapia são o mesmo processo” (1951, p. 250). Afinal, se é a partir do lugar que somos (ou não) convidados a ocupar no "apelo” do consulente que identificamos ajustamentos aflitivos, psicóticos ou neuróticos, porquanto ocupar (ou não) aquele lugar é um ato "clínico” (um descentrar-se ante o que faz derivar), toda identificação diagnóstica implica intervenção terapêutica. Mas no que exatamente intervimos? Quais lugares, precisamente, passamos (ou não) a ocupar?
Do fato de distinguirmos entre três gêneros fundamentais de ajustamento disfuncional não se segue que acreditemos que eles sejam estruturas totalmente incomunicáveis. É verdade que cada ajustamento descreve o comprometimento de uma determinada função do self. Mas, assim como as funções são sempre funções num só campo, denominado sistema self, os comprometimentos estão a sua vez articulados entre si, de modo a constituírem um sistema único. O que significa dizer ser possível observarmos, num mesmo consulente, em momentos diferentes de uma mesma sessão, os três tipos de ajustamentos disfuncionais de que se ocupa a Gestalt-terapia. Um consulente pode, numa mesma sessão: chegar aflito (carente de um dado); fazer uma formação reativa tão logo esse dado lhe seja oferecido (haja vista o fato de esse dado ameaçar uma inibição reprimida); e, depois da intervenção do clínico, responder de modo delirante aos excitamentos desarticulados que ele mesmo carrega em seu fundo e que porventura tivessem sido despertados por aquela intervenção. Ainda assim, os três ajustamentos serão diferentes entre si e, por conseguinte, requererão intervenções diferentes. Por outras palavras, eles são comprometimentos de funções diferentes, o que implica lugares diferentes a serem ocupados pelo clínico para efeito de intervenção e diagnose (entendidos como um só ato).
Conforme já anunciado, no presente capítulo, nós estamos dissertando sobre os ajustamentos neuróticos, exclusivamente. Estamos investigando os diferentes modos pelos quais, nas diversas etapas do processo de contato, a inibição reprimida interrompe o avanço do excitamento, estabelecendo laços sociais, cujo propósito é dispersar a ansiedade decorrente daquela interrupção. Do ponto de vista clínico, cada um desses laços constitui uma forma de apelo ao clínico: "seja meu modelo” (confluência), "seja meu mestre” (introjeção), "seja meu réu” (projeção), "seja meu cuidador” (retroflexão), "seja meu fã” (egotismo)... E nunca é demais lembrar que, assim como os três gêneros de ajustamento acima mencionados (aflição, psicose e neurose) constituem um só sistema, os vários tipos de "apelos” - que correspondem às diferentes formas de interrupção que caracterizam o ajustamento neurótico - constituem também eles um comportamento único. Segundo Perls; Hefferline e Goodman, a "tipologia” em que se apresentam os vários momentos de ação da inibição reprimida (com o propósito de interromper o avanço do excitamento inibido nas várias etapas do processo de contato) "não é uma tipologia de pessoas neuróticas” (1951, p. 259). Ou, ainda, “o esquema”: por cujo meio se descrevem as interrupções na progressão do excitamento inibido seja no pós-contato (confluência), no pré-contato (introjeção), no contatando (projeção e retroflexão) ou no contato final (egotismo): tal esquema “não é uma classificação de pessoas neuróticas, mas um método único de decifrar a estrutura de um comportamento neurótico único” (PERLS; HEFFERLINE e GODDMAN, 1951, p. 259).
De um ponto de vista clínico, essa “decifração” da estrutura de um comportamento único não se presta a determinar características, ou a explicar os motivos (conteúdos) implicados em cada etapa de um ajustamento neurótico. Ao contrário, trata-se apenas de uma descrição do modo de funcionamento da inibição reprimida na fronteira de contato. Ou, então, trata-se da descrição dos tipos de “laço social” produzidos pela inibição reprimida nas sessões terapêuticas; e por cujo meio ela própria demandaria ao clínico uma colaboração no trabalho de aniquilação da ansiedade decorrente da pressão exercida por um excitamento que, a sua vez, deveria permanecer inibido, mas que acabou sendo mobilizado por algum dado na fronteira de contato.
O propósito dessa descrição é orientar o clínico sobre “como” ele está sendo requisitado e sobre o que ele poderia “esperar” caso se deixasse arrebatar por tal requisição. Afinal, se o ajustamento neurótico é um comportamento único, os vários tipos de laço social produzidos pela inibição reprimida na sessão estão articulados entre si. Essa orientação, obviamente, não tem em vista capacitar o clínico para que, dessa forma, ele possa corresponder aos apelos estabelecidos pela inibição reprimida no interior de cada ajustamento. Trata-se, ao contrário, de oferecer ao clínico um panorama amplo sobre os possíveis modos de conexão dos ajustamentos entre si, o qual favoreça o trabalho de “frustração habilidosa” de cada qual.
A intervenção clínica nos ajustamentos neuróticos visa estabelecer uma relação de campo, uma situação de contato em que possam figurar: por um lado, a inibição reprimida (que está a atuar nos ajustamentos neuróticos) e, por outro, a angústia característica da presença de algo que se repete como função id. No presente tópico, vamos discutir a ação do clínico no que tange ao surgimento da inibição reprimida. Tal ação, conforme já mencionamos, é a pontuação da forma como o consulente habitualmente interrompe seu próprio fluxo de excitamentos. Para fazer essa pontuação, também o vimos, o clínico precisa se deixar descentrar nos apelos que tais interrupções lhe dirigem. O que não quer dizer que deva ser condescendente a eles. Ao contrário, para Perls, muito especialmente, a intervenção gestáltica nos ajustamentos neuróticos é, fundamentalmente, uma tentativa de frustração habilidosa dos apelos veiculados por aqueles ajustamentos. Habilidosa em dois sentidos: i) primeiramente porque estabelecida em um contexto no qual o consulente está protegido e ii) também porque eticamente comprometida com a promoção da autonomia da função de ego no consulente - e não com a vaidade do clínico.
Para Perls (1973, p. 104), existem tantas formas de frustração habilidosa dos ajustamentos neuróticos quantos a criatividade do clínico permitir existirem. De modo geral, pode-se dizer que as frustrações habilidosas são intervenções clínicas, por cujo meio o clínico "não” atende ao apelo - que o consulente lhe dirige - para atuar como modelo, como mestre, réu, cuidador, fã... Um simples olhar, um bocejo, uma interrupção da frase, o permanecer em silêncio, às vezes, são mais que suficientes para estabelecer tal frustração. Via de regra, se o clínico está descentrado no fluxo do consulente, essas atitudes estão integradas ao ajustamento que o consulente desempenha.
Se este demanda, com seu falatório, "seja meu fã”, o clínico pode inventar múltiplas maneiras de mostrar desinteresse ou desconfiança relativamente a esse ajustamento egotista, por exemplo, solicitando: "conte-me uma situação concreta em que você viveu isso sobre o que você está especulando”.
No caso de o ajustamento ser uma retroflexão, um pedido de cuidado, o clínico pode perguntar: "o fato de você me dizer que é um fracassado modifica, em alguma medida, a possibilidade de você realmente ser um fracassado?”.
Se logo a seguir o consulente fizer um ajustamento projetivo, acusando alguém ou o próprio clínico de alguma coisa, este pode propor ao consulente que troque de lugar com o acusado (num experimento de "cadeira vazia”, por exemplo), e possa dizer o que acontece consigo nesse novo lugar.
É frequente, depois de intervenções que debelam um ajustamento projetivo, o consulente se aperceber de sua implicação na projeção e, imediatamente, se afixar a um propósito de mudança. Nesse sentido, ele pode solicitar ao clínico que lhe diga se o que ele está pensando fazer está certo. A esse pedido introjetivo ("seja meu mestre”, meu "orientador”), o clínico pode "desorientar” dizendo: "o que lhe faz acreditar que você realmente quer mudar?”.
Isso pode levar o consulente a se deparar com suas próprias necessidades e, não as encontrando - como se presume num ajustamento confluente - de chofre devolver a pergunta ao clínico: "o que eu devo querer? Você o sabe?”. Para sair dessa condição de modelo - a quem o consulente "imita” reproduzindo o comportamento interrogativo - o clínico pode pontuar a posição corporal, o tônus muscular, o tom de voz com o qual o consulente faz a pergunta.
Talvez, então, para fugir do vazio que possa encontrar, o consulente inverta a sequência de ajustamentos, ou comece pelo egotismo, mais uma vez. E essa dialética pode se prolongar nas sessões por meses, até que o clínico se torne mais íntimo dos ajustamentos e, por conseguinte, uma ameaça mais intensa à inibição reprimida. As possibilidades de acontecer uma formação reativa aumentam e, com ela, o risco de o consulente abandonar o tratamento ou, finalmente, entrar em contato com seus próprios excitamentos.
É importante não confundir as intervenções do clínico com "interpretações” sobre quais haveriam de ser os excitamentos que o consulente estaria a interromper. Diferentemente da postura interpretativa, a postura de confrontação não é uma tentativa de "costurar”, dar sentido, buscar o excitamento inibido ou a inibição reprimida. Isso não só pouparia o consulente de fazer operar uma função de ego, como poderia expulsá-lo da terapia. O consulente poderia se sentir invadido, ou cobrado por palavras que, em verdade, foi o clínico quem as introduziu na sessão. Ou, então, o consulente poderia se sentir desbancado em seu lugar de consulente pelo próprio clínico, o qual, em seu afã de "dar sentido”, acabaria vítima de suas próprias teses, tendo de defendê-las diante do consulente. Fatalmente, o consulente acabaria perdendo o interesse pela terapia, porquanto as discussões das sessões não versariam mais sobre palavras ou ações que fossem suas. Versariam, sim, sobre os interesses desse “consulente-gato”, no qual o clínico se transformou.
Ou, num sentido inverso, as interpretações poderiam trabalhar em favor do êxito dos ajustamentos neuróticos, o que significa: ajudá-los a pulverizar a ansiedade advinda do excitamento inibido. O consulente sairia das sessões sentindo-se “confirmado”, “cuidado”, “vingado”, “justificado” e, sobretudo, “iludido” sobre seu próprio processo. Clínico e consulente poderiam doravante estabelecer um pacto em torno do suposto êxito do tratamento, quando em verdade, o que se passa é algo bem diferente. Mesmo porque o suposto êxito do tratamento não vai além da porta do consultório; em seu cotidiano, o consulente continua acometido das mesmas dificuldades de antes. Razão pela qual, o consulente - por perceber a insignificância do processo terapêutico no contexto geral de sua vida - abandona o clínico.
Aliás, para o clínico, a ansiedade do consulente não é algo a ser aplacado, seja pela interpretação, pela sugestão, enfim, por qualquer tentativa de se “fazer pelo consulente”. A presença da ansiedade indica que um excitamento inibido está sendo requisitado na fronteira e que a inibição não está conseguindo dar conta dele. É uma ocasião para a função de ego no consulente recuperar o posto (que a inibição reprimida lhe roubara) e criar, para o excitamento até então inibido, novos núcleos significativos, o que significa integrar a ansiedade a esses novos núcleos. A interpretação - se estabelecida pelo clínico - acabaria fazendo pelo consulente aquilo que, neste, seria tarefa da função de ego. Diferentemente da interpretação e de outras formas de “cuidado”, a frustração equilibrada visa escancarar a ansiedade e, assim, disponibilizá-la para a ação criativa da função de ego no consulente.
Essas objeções à interpretação não significam que Perls; Hefferline e Goodman desaconselhassem-na de todo. Os fundadores da Gestalt-terapia reconhecem uma relativa funcionalidade para a interpretação quando - e somente quando - esta é desempenhada pelo consulente. Por um lado, a interpretação é uma maneira de o consulente “operar” com isso que a frustração habilidosa revelou, precisamente, a presença da ansiedade. Ou, por outro lado, ela é uma das formas com as quais o consulente pode “enfrentar” a própria inibição reprimida, depois que ela se manifestou em um experimento proposto pelo clínico. Um desses experimentos pode ser, por exemplo, a própria associação livre - desde que esta “não” seja entendida como a metabase de onde o analista retiraria o material para as interpretações. É preciso aqui apresentar as reservas de Perls; Hefferline e Goodman sobre a função da associação livre nas sessões terapêuticas.
A genialidade da psicanálise foi mostrar que essas associações livres não se sucediam de fato meramente por essa lei de associação por partes; mais exatamente, elas tinham uma tendência a se organizar em todos ou conjuntos significativos, e a prosseguir numa determinada direção, e que esses conjuntos significativos tinham uma relação importante e significativa com o estímulo original, o detalhe do sonho, e com o problema subjacente do paciente. O paciente não estava de fato produzindo “mecanicamente” o fluxo, mas estava, embora não tivesse consciência disso, expressando determinadas tendências, retornando a certas necessidades emocionais e tentando preencher uma figura inacabada. Isto foi, naturalmente, uma prova fundamental da existência do inconsciente; o problema é se isto é útil para a psicoterapia (PERLS; HEFFERLINE e GODDMAN, 1951, p. 135).
Evidentemente, Perls; Hefferline e Goodman não utilizam a associação livre visando os mesmos fins almejados pela psicanálise. Não se trata de esperar, por meio da associação livre, que o consulente se aperceba de um desejo inconsciente. A associação livre não é para eles uma metodologia de acesso ao inconsciente. Trata- se de uma provocação que o clínico dirige ao consulente ou, trata-se de um experimento de linguagem cujo propósito é quebrar o controle rígido (egotista) com o qual o consulente costumeiramente dissimula sua ansiedade.
Existe uma virtude mais essencial na livre associação, mais próxima do uso que a psicanálise classicamente fez dela. A razão pela qual se pede ao paciente que faça associações livres em lugar de contar sua história e responder a perguntas é naturalmente porque sua conversa costumeira é neuroticamente rígida, é uma integração falsa de sua experiência. A figura da qual tem consciência é confusa, obscura e desinteressante porque o fundo contém outras figuras reprimidas das quais ele não tem consciência, mas que distraem sua atenção, absorvem energia e impedem um desenvolvimento criativo. A livre associação rompe essa relação rígida entre figura e fundo, e permite que outras coisas venham para o primeiro plano (PERLS; HEFFERLINE e GODDMAN, 1951, p. 137).
Mas isso não significa, necessariamente, que o consulente consiga se apropriar dessas “outras coisas”, desses invisíveis, da própria presença da inibição reprimida ou do excitamento inibido. De um modo geral, quem se apercebe disso é o clínico - e, com muita frequência, apenas o clínico.
Note que o terapeuta está se concentrando no fluxo e criando figuras totais nele (achando-as e produzindo-as): presta atenção aos conjuntos, cronometra as associações que se prolongam e que indicam resistência, percebe o tom e a expressão facial. Desse modo torna-se consciente de algo sobre o paciente, a saber, o comportamento do paciente na inconsciência. Contudo, o objetivo da psicoterapia não é de o terapeuta ter consciência de algo a respeito do paciente, mas de o paciente ter consciência de si próprio (PERLS; HEFFERLINE e GODDMAN, 1951, p. 135-136).
E mesmo que o clínico se ocupe de explicar “ao paciente o que ele (o T) agora sabe sobre ele (o P)” (PERLS; HEFFERLINE e GODDMAN, 1951, p. 136), tal não faz mais que corroborar o pedido neurótico dirigido ao clínico: explique-me, mostre-me como eu sou interessante, e assim por diante.
Dessa maneira, o paciente adquire, sem dúvida alguma, muitos conhecimentos interessantes a respeito de si próprio, mas é de se perguntar se ele intensifica por meio desses a awareness de si mesmo. Porque o conhecimento-sobre tem um certo caráter abstrato, não é pleno de interesse; além de, mais uma vez, estar ocorrendo no seu contexto costumeiro de introjeção da sabedoria de uma autoridade. Se pudesse vir a reconhecer o objeto do conhecimento como sendo ele mesmo, então esse tipo de conhecimento - do qual estávamos a par e não sabíamos que estávamos a par - seria íntimo e tremendamente pleno de interesse. O objetivo da terapia é fazer com que ele reconheça isso, mas este é exatamente o ponto de onde partimos em primeiro lugar (PERLS; HEFFERLINE e GODDMAN, 1951, p.136).
Contra esse estado de coisas, Perls; Hefferline e Goodman exortam os clínicos a estabelecerem um uso da livre associação em que o próprio consulente se sinta responsável por seu discurso e capaz de estabelecer - agora sim - a interpretação daquilo que neste se produziu. Por outras palavras, o uso que um clínico pode fazer da livre associação é aquele em que se solicita ao consulente que este seja "parceiro no processo de interpretar” (PERLS; HEFFERLINE e GODdMaN, 1951, p. 137). Para tanto, é importante que o clínico comece, por um lado, estabelecendo algumas interpretações, que funcionem de maneira didática, encorajando o consulente a fazê-las por si. Por outro, é fundamental que o clínico frustre essas interpretações, denunciando as tentativas de controle da ansiedade que nelas se produziu. Dessa forma, o consulente tem acesso, mais do que à ansiedade, ao modo como ele mesmo tenta aniquilá-la. Ele tem acesso a um estilo, a seu próprio modo de interpretar, o que significa: ele tem acesso a seu próprio modo de construir e desconstruir a presença da ansiedade, a presença do excitamento ansiogênico. A interpretação deixa de ser a expressão do interesse epistêmico do clínico, para se tornar uma instância ética, uma forma de comprometimento do consulente com seu próprio processo terapêutico, com a maneira como ele mesmo lida com suas situações inacabadas.
Desse ponto de vista, ele [o consulente] tem naturalmente que se tornar um parceiro no processo de interpretar. A noção aqui é de que a máxima ‘Conhece-te a ti próprio’ é uma ética humana: não é algo que nos fazem quando estamos em dificuldades, mas algo que fazemos em prol de nós como seres humanos (1951, p. 137 - nosso grifo).
Ainda assim, essa aquisição do consulente relativamente ao seu estilo, ao seu modo de operar ou evitar a ansiedade, pode ser cooptada pela inibição reprimida.
O perigo da técnica seria que, pondo de lado o self que é responsável, que sente interesse e toma decisões, o paciente vinculasse seu novo conhecimento estritamente à sua verbalização, matizada agradavelmente por uma atmosfera afetuosa e uma platéia paternal amiga. Então, em lugar de curar a divisão, a técnica a embaralharia mais ainda (PERLS; HEFFERLINE e GODDMAN, 1951, p.136).
Com o passar das sessões é frequente que as interpretações que o consulente produz relativamente a seu próprio processo comecem a favorecer ajustamentos egotistas. As interpretações começam a ser usadas em favor da evitação do contato final ou da assimilação dos excitamentos ansiogênicos que estejam sendo requisitados no aqui/agora da sessão. Momento em que, mais uma vez, o clínico deve propor novas frustrações habilidosas das estratégias de defesa implementadas pela inibição reprimida, até que enfim, na sessão, ocorra uma formação reativa.
De fato, o êxito da frustração habilidosa é alcançado quando, no consulente, a inibição reprimida não consegue mais disfarçar a ansiedade, sentindo-se obrigada a atuar contra o dado que esteja a mobilizar o excitamento ansiogênico, seja esse dado ou não o próprio clínico. Por outras palavras, o êxito da frustração habilidosa se deixa saber no momento em que o clínico pode testemunhar, da parte da fisiologia secundária no consulente, uma formação reativa. A inibição já não se sustenta diante das provocações do clínico. E, antes de permitir a plena manifestação da situação inacabada, ela ataca aquilo que, na fronteira de contato, intensifica o chamado por aquela situação.
Nesse momento, o clínico não vai mais perceber, no consulente, aqueles apelos que antes caracterizavam os ajustamentos neuróticos. Ele não vai mais ser requisitado a trabalhar pelo consulente, seja como modelo, mestre, vítima, cuidador ou fã. A configuração de campo agora é diferente e tudo o que o consulente quer é se ver livre da sessão, do clínico ou das intervenções que o clínico lhe dirige. Por conta disso, se o que estiver em questão - para o clínico - for o ataque à inibição em proveito da assimilação de um excitamento inibido, o consulente poderá se tornar mais agressivo, extremamente irônico ou insubordinado às propostas do clínico. Se o que estiver em questão for a utilização do excitamento inibido em favor da abertura de um novo campo, o consulente poderá intensificar sua dessensibilização, sua desorientação, não mais entender o que se passa na sessão, fazer uma passagem ao ato. No decurso da sessão, ele pode derrubar um objeto, desfalecer, tropeçar. Ou, logo após a sessão, ou mesmo antes de chegar até ela, o consulente pode perder a condução, bater o carro, torcer o tornozelo e assim por diante. Eis a ocasião, o segundo momento da intervenção, o momento da proposição do segundo recurso fundamental da intervenção gestáltica, que é o experimento de concentração nas polaridades, nas polaridades inerentes àquilo que o consulente esteja percebendo, sentindo, fazendo, dizendo...
O desencadeamento de uma formação reativa no consulente é a prova de que o processo terapêutico cresce na direção do que se esperava, precisamente: a manifestação explícita da inibição reprimida, por um lado, e a liberação da função de ego, por outro. Mas, a manifestação da primeira não implica necessariamente a liberação da segunda. Mesmo o consulente se apercebendo de suas próprias formações reativas, tal percepção não assegura à função de ego o controle sobre a situação, a condução do excitamento antes inibido até o contato final. Para tal, a função de ego precisa ser "treinada”; ela precisa ser iniciada nesse desafio.
O consulente não sente mais aquela ansiedade de antes, porquanto o excitamento inibido está disponível. Em contrapartida, o consulente agora está tomado pela "angústia”, que é o efeito daquele excitamento na função de ego. Aliás, para uma função de ego ativa na fronteira de contato, a co-presença de um excitamento antes inibido (e que restava no fundo como situação inacabada) sempre implica angústia. Esta não é mais que a tensão característica do momento de criação, do momento em que a função de ego está prestes a estabelecer o contato final entre um excitamento ainda investido de tensão material (e que, portanto, não havia sido assimilado) e um dado na fronteira de contato. A tarefa do clínico, nesse momento, é pontuar, não mais a ansiedade, mas a presença desse novo "estranho”, que aparece nas "entrelinhas” da formação reativa ou depois que ela se dissipou - e antes que a inibição reprimida conseguisse se reorganizar. Trata-se desses "acontecimentos”, sempre inesperados, tal como o chiste, o ato falho, as frases impensadas, as rememorações involuntárias, os olhares incertos pelos quais o consulente "vaza” em direção ao nada, os gestos habituais por cujo meio atua como se estivesse noutra geografia, noutra cena que não aquela da sessão. Apoiado nesses acontecimentos, devidamente pontuados, o clínico propõe "experimentos clínicos”, por cujo meio o consulente possa assumir consequências, frequentar possibilidades, exagerar posturas, dentre outras infinitas variáveis expressas junto àqueles acontecimentos. A intenção é que o consulente possa "derivar” pelas possibilidades que, de maneira operativa, ele mesmo anunciou, executou ou omitiu. O clínico desafia a função de ego no consulente a "escolher”, a "deliberar”, enfim, a "criar” campos de presença, até que este se aperceba de que não precisa mais da terapia para fazer isso.
Depois das formações reativas, os consulentes costumam esboçar um "pathós”, um espanto em decorrência do que acabaram de sentir, dizer ou fazer. Nesse momento, os excitamentos inibidos ficam à deriva, sem o controle da inibição reprimida, e ainda sem receberem a ação da função de ego. É um momento crítico, pois as "sonolências” do clínico - que se manifestam, sobretudo, quando este insiste em continuar a sessão mesmo não havendo mais nada a se fazer, ou quando permite ao consulente mudar de assunto para assim dissipar o mal-estar que porventura tenha se instalado na sessão - podem facilitar a reabilitação da inibição reprimida e a retomada dos ajustamentos neuróticos. Pontuar esse momento - o que sempre demanda do clínico uma extrema concentração no fluxo ou, o que é a mesma coisa, o pleno descentramento do clínico na sessão - é de fundamental importância para a mobilização da função de ego no consulente. Tal pontuação pode se dar das mais variadas formas, dependendo do estilo do clínico: este pode estabelecer o "corte” da sessão, mandando o consulente para casa antes do teto previsto para o término da consulta; ou, então, ele pode interromper o que o consulente estiver fazendo e lhe pedir para "repetir”, "prestar atenção”, enfim, se "apropriar” daquilo que esteja acontecendo consigo naquele instante, naquele consultório... Essa pontuação
inaugura o estágio da "angústia”, porquanto o "pontuado” é a maneira como o próprio fundo, antes inibido, emergiu na fronteira de contato depois que a inibição reprimida saiu de cena.
O clínico nunca sabe, e jamais saberá o que é isso que está a gerar angústia no consulente. Nem mesmo este o sabe; só a sente. Trata-se de algo novo, com o qual o consulente não sabe lidar. Por um lado, ele poderia reabilitar a inibição reprimida - o que pode equivocadamente ser facilitado pelo clínico. Mas, por outro, ele pode se arriscar, pode se deixar conduzir por esse "estranho” que vem dele mesmo. "Experimento” é o nome dessa segunda alternativa, é a opção pelo risco, pela criação do inédito. Trata-se, em verdade, da recondução da função de ego ao governo do processo de contato. É muito importante aos terapeutas terem isso em conta, para não caírem no equívoco de acharem que "experimento” tem a ver com aquelas técnicas dramatúrgicas, aeróbicas, linguísticas, dentre outras tão frequentemente utilizadas no consultório, e que não raro acabam se tornando motivo de entretenimento ao próprio clínico. Tais técnicas podem sim ser utilizadas para mobilizar a função de ego no consulente no momento em que este esteja tomado pela angústia. Mas não é a técnica ela mesma o experimento, e, sim, a mobilização da função de ego no consulente. Esta não necessariamente precisa acontecer nas dependências do consultório, no decurso da sessão. Ela pode se dar, por exemplo, no caminho de volta do consulente para casa, dois dias depois da sessão, nos sonhos que o consulente venha a sonhar. O experimento não precisa sequer do testemunho do clínico. Por vezes, "abandonar” o consulente em sua angústia é o melhor que podemos fazer em proveito da mobilização da função de ego; o que, obviamente, não é certeza de que ele irá se dar "bem” ou "mal”, pois, o bem-estar ou o mal-estar do consulente não é objeto da intervenção clínica nos ajustamentos neuróticos.
Outras vezes, acompanhar o consulente na elaboração de um experimento - na recondução do ego ao controle da situação - é algo muito importante para o êxito da experiência clínica. Afinal, não é incomum que - depois de um grave comprometimento da função de ego - os consulentes não consigam articular, por conta própria, uma situação de contato. O clínico pode colaborar solicitando aos consulentes que utilizem outros recursos, que não os mais acessíveis, para lidar com a angústia que estejam sentindo. No caso de um sonho, do qual tenham involuntariamente se lembrado, mas que não conseguem compreender, o clínico pode lhes pedir que tentem fazê-lo por outros meios, por exemplo, dramatizando os próprios sonhos na sessão. Evidentemente, não se trata de pedir aos consulentes que descubram, por meio dessa técnica, algo que se articula no subterrâneo das suas ações. Já não estamos mais trabalhando com algo reprimido, que pudesse ser interpretado. Trata-se, ao contrário, de oportunizar a eles a ocasião de se apropriarem de algo que possam fazer sem planejar, dizer sem pensar, criar sem precisar antes arquitetar. Mesmo se o clínico se limitar a pedir que os consulentes relatem uma segunda vez o sonho lembrado, mas agora reproduzindo cada personagem na primeira pessoa do singular, o importante é que, por meio dessa técnica, eles possam assumir aquilo que o relato de cada qual instituiu. Não se trata mais de uma interpretação, mas de um exercício de emancipação de um dizer e de um agir. O que se fez e o que se disse, ambos devem poder ser assumidos tal como se manifestaram, segundo o modo como se apresentaram. O que levou os fundadores da Gestalt-terapia a falarem do experimento como uma sorte de "surrealismo”. Há nos sonhos, como em todos os experimentos, a criação de uma nova gestalt, de uma nova configuração, algo que está mais além da realidade (função personalidade), um real além da realidade, a polaridadeii da inibição reprimida. Nesse sentido, dizem os autores:
Suponhamos que o paciente aceite o sonho como seu próprio sonho, lembre-se dele e possa dizer que o sonhou em lugar de dizer que um sonho veio a ele. Se ele puder agora ligar novas palavras e pensamentos a esse ato, haverá um grande enriquecimento da linguagem. O sonho fala na linguagem de imagens da infância; a vantagem não é rememorar o conteúdo infantil, mas reaprender algo do sentimento e da atitude da fala infantil, recapturar o tom de visão eidética, e vincular o verbal e o pré- verbal. Contudo, desse ponto de vista, o melhor exercício seria talvez não a livre associação a partir da imagem e o emprego de frio conhecimento à imagem, mas exatamente o contrário: uma representação literária e pictórica cuidadosa desta (surrealismoj (PERLS; HEFFERLINE e GODDMAN, 1951, p.136-137).
Ora, o processo de reabilitação da função de ego, que define o experimento, não está amparado em regras, experiências paradigmáticas ou modelos que pudessem ajudar o consulente nesse desafio. Podemos, sem dúvida, descrever o estilo adotado por Perls e seus colaboradores. Ou, então, podemos descrever os diferentes momentos de um experimento, tal como na passagem a seguir, em que os autores procuram retratar a ambivalência característica desse momento clínico, que é o momento do experimento. Nele, o excitamento inibido já se manifesta por si disponível para a função de ego. Mas esta ainda não tem autonomia suficiente para lidar com àquele; razão pela qual ela é frequentemente atravessada pelo retorno da inibição reprimida. Um estado ansiogênico então se reconfigura, embora isso já não seja condição suficiente para a função de ego sair de cena. É inevitável que ela assuma o controle; exigindo-se do clínico que possa reconhecer esse conflito, favorecendo a criatividade no consulente.
1.            O paciente como parceiro ativo no experimento, concentra-se no que está realmente sentindo, pensando, fazendo, dizendo; ele tenta entrar em contato com isso mais intimamente em termos de imagem, sentimento do corpo, resposta motora, descrição verbal, etc.
2.            Como é algo que o interessa intensamente, não precisa de modo deliberado prestar atenção a isto, mas isto lhe atrai a atenção. O contexto pode ser escolhido pelo terapeuta a partir do que ele conhece do paciente e de acordo com sua concepção científica de onde está a resistência.
3.            É algo de que o paciente está vagamente consciente e de que se torna mais consciente devido ao exercício.
4.            Ao fazer o exercício, o paciente é encorajado a seguir sua inclinação, a imaginar e exagerar livremente, pois trata-se de um jogo seguro. Ele emprega a atitude e a atitude exagerada na sua situação concreta: sua atitude em relação a si próprio, em relação ao terapeuta, seu comportamento costumeiro (na família, no sexo, no trabalho).
5.            Alternadamente, ele inibe de modo exagerado a atitude e emprega a inibição nos mesmos contextos.
6.            À medida que o contato torna-se mais íntimo e o conteúdo mais completo, ele fica ansioso. Isto constitui um estado de emergência sentida, mas a emergência é segura e controlável, e os dois parceiros sabem que ela o é.
7.            O objetivo é que, na emergência segura, a intenção subjacente [a situação inacabada] - uma ação, atitude, objeto atual, memória - se torne dominante e reforce a figura.
8.            O paciente aceita a nova figura como sendo sua própria, sentindo que “sou eu que estou sentindo, pensando e fazendo isso” (PERLS; HEFFERLINE e GODDMAN, 1951, p. 95-96).
Mesmo a inibição reprimida tendo sido debelada, no experimento, ela pode voltar gerando um estado novamente ansiogênico, embora já sem a força de antes. O desafio para o clínico é oferecer novos fundos de experiência para que o consulente (na função de ego) possa se apropriar disso que para este já é evidente, precisamente, a emergência do excitamento antes inibido. Mas essa descrição não prescreve o que o clínico ou o consulente "devem fazer”. Enquanto reabilitação da função de ego, o experimento é algo sempre inédito, uma criação inédita estabelecida pelo consulente.
Tal não implica que o experimento seja uma criação individual, solipsista. O consulente sempre pode contar com os excitamentos já assimilados, os quais restaram para ele como hábitos. Ou, ainda, ele também pode contar com as possibilidades de futuro abertas pelos dados na fronteira de contato. E, ainda que os hábitos e as possibilidades não assegurem, por si só, a realização do contato final para o excitamento antes inibido e agora disponível como angústia, é a partir deles que o agente criador pode voltar à cena, qual seja esse agente, a função de ego. O que significa que a função de ego não é uma criação a partir do nada. Ela é uma criação condicionada, feito liberdade de situação, que só pode ser exercida na mediação do mundo e dos homens, a partir do que neles é passado e em direção ao futuro. Trata-se de uma liberdade que se exerce num campo, do qual o clínico também participa. Merleau-Ponty, ao comentar a maneira como o "tratamento psicanalítico” cura - o que de forma alguma se deve às razões do analista ou aos méritos da metapsicologia psicanalítica - descreve essa liberdade como uma sorte de criação engajada, que se faz no âmbito da coexistência entre o clínico e o paciente. Nas palavras de Merleau-Ponty (1945, p. 610):
O tratamento psicanalítico não cura provocando uma tomada de consciência do passado, mas em primeiro lugar ligando o paciente ao seu médico por novas relações de existência. Não se trata de dar um assentimento científico à interpretação psicanalítica e de descobrir um sentido nocional do passado, trata-se de revivê-lo como significando isto ou aquilo, e o doente só chega a isso vendo seu passado na perspectiva de sua coexistência com o médico. O complexo não é dissolvido por uma liberdade sem instrumentos, mas antes deslocado por uma nova pulsação do tempo que tem seus apoios e seus motivos.
Entendido como reabilitação da função de ego, o experimento é uma criatividade que se constitui no campo. Ou, então, o experimento é a própria criatividade do campo - e não a manifestação exterior de um poder espiritual que habitaria o clínico ou o consulente. O experimento é a solução que o consulente - a partir do que ele pôde viver na relação terapêutica - encontrou para o excitamento antes inibido e agora ressurgido como angústia. Conforme Perls; Hefferline e Goodman (1951, p. 173-174):
(a) criatividade é inventar uma nova solução; inventá-la tanto no sentido de descobri-la quanto no de elaborá-la; contudo, essa nova maneira não poderia surgir no organismo ou no seu “inconsciente”, porque aí só há maneiras conservativas; nem poderia estar no ambiente novo como tal, porque mesmo se topássemos com ela aí, não a reconheceríamos como sendo nossa. Não obstante, o campo existente que se converte no momento seguinte é rico em novidade potencial, e o contato é a realização. A invenção é original; é o organismo que cresce, que assimila substâncias novas e se nutre de novas fontes de energia. O self não pode saber, de antemão, o que inventará, porque o conhecimento é a forma do que já ocorreu; e certamente um terapeuta não o sabe, por que não pode fazer crescer o crescimento de outra pessoa - ele simplesmente é parte do campo. Mas ao crescer o self se arrisca - arrisca-se com sofrimento caso tenha evitado durante muito tempo arriscar-se, e por conseguinte deve destruir muitos preconceitos, introjeções, ligações com o passado fixado, seguranças, planos e ambições; arrisca-se com excitamento se puder aceitar viver no presente (1951, p. 173-174).
Ora, o experimento - enquanto reabilitação da função de ego - é aquilo que faz o campo crescer, é aquilo que introduz, na relação clínica, uma novidade que nem clínico nem consulente poderiam esperar. Seja no interior da sessão, ou no intervalo entre elas, se o clínico souber autorizar um experimento, então algo irá acontecer, uma transformação no consulente poderá ser percebida. O consulente se mostrará, após a vivência clínica (que funcionou como experimento), ou no retorno à próxima sessão, investido de uma disposição para agir e, não raro, capaz de elaborar algo a respeito de si como nem mesmo o melhor dos hermeneutas poderia sonhar em fazer. Não é incomum, inclusive, que o consulente se mostre capaz de nomear o excitamento antes inibido. Nada disso, entretanto, se confunde com bem-estar, pois, tal disposição pode estar empenhada, por exemplo, na retomada de um luto mal feito, de uma agressão sofrida. O que, fundamentalmente está diferente é que, ao contrário do que acontecia antes, quando enredado em seus próprios ajustamentos neuróticos; agora, o consulente não implicará mais o clínico em seus projetos. Aquele apelo de antes dá lugar a uma autonomia - a qual não está desprovida de gratidão. Diferentemente de antes, o consulente não precisa mais pedir amor ao clínico. O consulente agora aprendeu a amar, a cuidar, a agradecer, a sofrer... Mais ainda, ele aprendeu a habitar um campo, frequentar um laço social, sem dele “depender”. Doravante, ele pode seguir por si.
O que se espera de uma intervenção gestáltica em ajustamentos neuróticos é que o protagonista social desses ajustamentos, precisamente, o consulente, possa desenvolver, não importa em quanto tempo de terapia, a capacidade para pontuar, ele próprio, o modo como se interrompe e que possa estabelecer, por ele mesmo, novos ajustamentos criadores. O que se espera é que ele possa praticar, por conta própria, a Gestalt-terapia, não como profissão ou identidade social, mas como postura frente aos seus próprios excitamentos. Nesse sentido, espera-se dele que não precise de ninguém como modelo, lei, réu, cuidador, fã... Mas que, ainda assim, possa estabelecer laços sociais por cujo meio continue a criar, nos dados concretos da atualidade, possibilidades de repetição disso que ninguém jamais faz cessar, precisamente, a impessoalidade de excitamentos já realizados que arrastamos feito rabo de cometa, qual corpo habitual ou função id.
O momento da alta é sempre uma decisão do consulente. A menos que, por alguma razão extemporânea ao processo terapêutico, o clínico não possa mais continuar o ofício, é do consulente a prerrogativa de decidir quando parar. O que não quer dizer que a simples decisão de parar seja ela mesma uma alta. Os consulentes podem parar por outras razões, frequentemente por terem encontrado, noutros tipos de laço social, a parceria necessária para sustentar os ajustamentos com os quais se ocupavam em disfarçar a ansiedade sentida. Mas quando se trata de alta, o que se passa é algo muito diferente, não obstante o clínico nunca ter absoluta certeza das razões que levaram seu consulente a encerrar o processo. De toda sorte, pouco importa ao clínico ter essa certeza - caso ela fosse possível. Ao clínico importa a alta que, a cada sessão, ele dá a si mesmo: "eu não dependo desse consulente para fazer o que faço, cobrar o que cobro, criar o que crio...”. Se for capaz de renovar essa autorização de si, muito provavelmente poderá testemunhar a autorização de outros clínicos, formados em seu consultório, não como profissionais em psicoterapia, mas como agentes do contato nos campos em que estiverem inseridos.
O clínico sabe, a partir de seu próprio processo, que o momento da alta no consulente envolve muitas etapas. Ela começa a se configurar no momento em que, pela primeira vez, o consulente se mostra capaz de ir além da inibição reprimida. Tal significa dizer, a alta começa no momento em que o consulente desempenha uma formação reativa contra algum dado na fronteira de contato, o qual pode ser o próprio clínico. A inibição reprimida foi desmascarada e, com ela, a co-presença do excitamento não assimilado, investido de tensão material e, portanto, fonte de ansiedade. O consulente então abre mão dos ajustamentos neuróticos habituais em proveito daquele excitamento. Já não há mais a ansiedade de antes. Há em vez disso uma angústia, que o consulente trata de atravessar criando novos ajustamentos, novas gestalten. Por meio dessas criações, às quais a Gestalt-terapia chama de experimentos, o consulente ativa a função de ego antes alienada em favor da inibição reprimida. Ele se sente agora “energizado” para enfrentar, em quaisquer novas situações, os excitamentos de sempre, as repetições que fazem de sua vida a expressão singular desse campo do qual nunca está apartado e que, ademais, inclui o clínico.
Mas isso não significa que a inibição de antes deixou de existir. Nada que tenhamos vivido como situação de contato (mesmo aquelas situações que permaneceram abertas) escapa de ser retido - a menos que estejamos diante de um comprometimento da função id, o que exigirá da nossa parte ajustamentos psicóticos. Em não havendo tal comprometimento, aquilo que foi retido não se aniquila jamais, mesmo as inibições reprimidas devassadas no processo terapêutico. Elas continuam firmes e fortes, muito embora já não impliquem, como implicavam antes, um sentimento ansiogênico. Os consulentes que puderam atravessar suas próprias inibições reprimidas têm a estas como a uma fortuna muito bem guardada e que, não obstante havê-los feito sofrer, ainda assim legaram muitas criações, criações sintomáticas, por meio das quais também obtiveram muita satisfação, obtiveram satisfação possível - como no caso dos ajustamentos neuróticos. Nesse sentido, não é incomum que os consulentes, depois de haverem efetivado a alta em relação aos seus próprios sintomas, continuem sentindo "saudades”. Os consulentes já não sofrem como antes, mas, nem por isso, deixam de sentir, como a um horizonte familiar co-presente, às criações de outrora. Dizendo de outro modo, eles ainda sentem, lado a lado com a angústia da criação, uma espécie de nostalgia daquilo que, por essa razão, tornam a repetir: os atos inibitórios de antes.
Eis então o clínico (ou, se quiserem, o clinicante): alguém que não apenas foi além de suas próprias inibições em proveito da criação, mas que também continua a sentir o que antes sentia, porquanto os atos, as inibições não podem ser preteridas. Mas ele já não se paralisa na inibição. Ele cria a partir dela. Continua a senti-la, como a uma paixão antiga, ou como a uma perda por morte inesperada, que deixou de doer, mas ainda paira no ar como bruma. Depois da alta, ninguém deixa de sofrer. Aprende a produzir com o sofrimento. Amplia-se.
MERLEAU-PONTY, Maurice. (1945). Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2 d. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
PERLS, Frederick; HEFFERLINE, Ralph; GOODMAN, Paul. (1951). Gestalt Therapy: excitement and growth in the human personality. Second Printing. New York: Delta Book, 1965.Tradução utilizada: Gestalt-Terapia. Trad. Fernando Rosa Ribeiro. São Paulo: Summus, 1997.
PERLS, Frederick. (1942). ”Ego, fome e agressão”. Trad. Georges Boris. São Paulo: Summus, 2002.
. (1973). A abordagem Gestáltica e Testemunha Ocular da Terapia. Trad.
José Sanz. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
RIBEIRO, Walter. (1998). Existência e essência - desafios teóricos e práticos das psicoterapias relacionais. São Paulo: Summus.
1 Acompanhamos Walter Ribeiro (1998, p. 64), quando diz: “Fritz Perls, por exemplo, se cansou de dizer que a Gestalt-terapia não se interessa por problemas (mas se cansou também de cuidar deles em suas demonstrações), e talvez por isso, ou pelos eternos mal-entendidos teóricos (ou simples desconhecimento deles?), o que mais se vê é Gestalt-terapetuas se debatendo e tentando resolver problemas sem a menor consciência do que estão fazendo e sem a menor consciência de que o propósito da terapia que buscam e que dizem estar praticando não é este. A resolução de problemas, em geral, faz o oposto do propósito da integração das partes alienadas: satisfaz a grandiosidade do terapeuta e desenvolve ainda mais o sistema de papéis de ambos”.

" É por meio da noção de experimento que Perls retoma, agora no campo da intervenção clínica, o pensamento diferencial de Friedlaender. O experimento é sempre uma tentativa de reabilitação da polaridade da inibição reprimida, precisamente, a função de ego. Ou, ainda, o experimento é sempre a intensificação da polaridade da ansiedade, que é a angústia. Trata-se numa aposta do clínico na capacidade do consulente para criar não na direção da inibição dos excitamentos, mas da expansão deles junto a novos campos de presença.